
Por Aline Fiori, Louisa Harryman e Yasmin Constante
Cada vez mais presentes nas prateleiras dos supermercados, produtos como “pó para preparo de bebida à base de café”, “mistura láctea”, “óleo composto de soja e azeite” e “cobertura sabor chocolate” evidenciam como o aumento no preço dos alimentos está diretamente ligado à qualidade da nutrição.
Estes compostos se diferenciam não apenas na qualidade, mas, também, na composição. Para baratear a produção são utilizados substitutos como aromatizantes artificiais, intensificadores de sabor, corantes e gorduras mais baratas, que afetam o valor nutricional das refeições.
Um dos fatores que impulsiona a inflação alimentar é a crise climática. Um estudo da Universidade de Potsdam, em parceria com o Banco Central Europeu, estima que até 2035 as mudanças no clima podem elevar os preços dos alimentos entre 0,9% e 3,2% ao ano, em média. A pesquisa mostra como o aumento das temperaturas e a escassez de chuvas reduzem a oferta agrícola e favorecem o aparecimento de pragas no campo.
Os impactos, no entanto, não se limitam à economia. No Brasil, onde 23,2% do Produto Interno Bruto (PIB) — o equivalente a R$ 2,72 trilhões — vem do agronegócio, o cenário climático também interfere diretamente no acesso da população à alimentação saudável, essencial para saúde e qualidade de vida.
Metas climáticas
Em 2025, entre os dias 10 e 21 de novembro, o Brasil sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), na cidade de Belém (PA). Realizada anualmente, o evento reúne líderes mundiais, cientistas, organizações não governamentais e representantes da sociedade civil para analisar o cumprimento do Acordo de Paris por parte dos países participantes. A partir dessas análises, são discutidas novas metas de redução de emissões de carbono e ações para conter o aquecimento global.
Para André Búrigo, sanitarista e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a realização da COP em Belém é importante para aquecer o debate sobre mudanças climáticas entre os brasileiros. No entanto, André também ressalta que a conferência ocorre em um contexto de muita contradição, e que não ocorrerão debates importantes e profundos. “Acho pouco provável que o avanço do agronegócio sobre a Amazônia vire um tema de denúncia tão forte. É até mais provável que se apresente algum tipo de vitrine, como se o agronegócio no Brasil fosse sustentável.”
No ano de 2024, a temperatura global ultrapassou a marca de 1,5 °C de aumento — limite estabelecido pelo Acordo de Paris para evitar os efeitos mais severos das mudanças climáticas. De acordo com relatório do Serviço Copernicus para as Alterações Climáticas (C3S), 2024 foi o ano mais quente já registrado no planeta desde o início dos registros modernos, em 1850. O documento aponta que as alterações climáticas induzidas por atividades humanas continuam sendo os principais fatores de aquecimento, agravadas por fenômenos naturais como o El Niño, no qual as águas superficiais do Oceano Pacífico ficam excepcionalmente quentes
Búrigo explica que o Brasil está entre os cinco países que mais agravam as mudanças climáticas, e entre essas nações, se caracteriza como o único que não tem como principal causa do impacto a produção de gases do efeito estufa e exploração de energia de petróleo. “Cerca de 75% da contribuição brasileira, talvez um pouco mais do que isso, vem do desmatamento, do uso da terra e da agropecuária. Então, no nosso país isso é absolutamente central. Falar sobre mudanças climáticas é falar sobre agronegócio, sobre sistemas alimentares.”

O aquecimento do território brasileiro
Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), as temperaturas no Brasil aumentaram até 2,2 °C desde 1940. O Pantanal, que se estende pelos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, foi a região mais afetada, seguida pelo Cerrado, que cobre parte do Centro-Oeste e Nordeste. Outros biomas também registraram aumentos significativos de temperatura. Os impactos das mudanças climáticas ficam evidentes com as alterações que ocorrem no meio ambiente. O Cemaden aponta que, em 2024, o país viveu a pior seca já registrada na história. A InfoAmazônia mostra que a seca refletiu no menor nível dos principais rios do norte do país: Amazonas, Madeira, Solimões, Negro, Purus, além do afluente Paraná do Careiro, integrantes da bacia do Amazonas. A falta de chuvas também culminou no aumento de incêndios em 79% quando comparado a 2023, segundo o MapBiomas, junto ao ressecamento da vegetação.
Além disso, levantamentos de pesquisas afirmam que as enchentes no Rio Grande do Sul em 2024 foram o maior desastre natural da história do estado e um dos maiores do Brasil, com impactos jamais observados no País. O estado gaúcho concentra 70% da produção nacional de arroz, e segundo Búrigo, as enchentes tornaram o país muito vulnerável do ponto de vista da oferta de um dos alimentos mais importantes para a mesa do brasileiro. “O governo Lula, então, corretamente lançou um programa para retomar a produção de arroz em várias outras regiões do país, o Arroz da Gente”, explica.
Agro e pecuária sob risco
Segundo dados do IBGE, o Centro-Oeste lidera a produção nacional de grãos, com destaque para soja, milho e algodão. O estado é seguido pelo Sul , Sudeste, Nordeste e Norte , respectivamente. Com o avanço da estiagem e a elevação das temperaturas, o setor do agronegócio, que abrange em torno de 25% do PIB do país, tem enfrentado perdas de produtividade, aumento nos custos de irrigação e maior risco de pragas.
O impacto na produção de alimentos começa no processo de plantio das sementes. A seca prolongada, por exemplo, resulta na inviabilidade de germinação das sementes devido à escassez de água. Em contrapartida, o excesso de chuvas e temperaturas elevadas prejudicam o desenvolvimento do plantio.
O solo também é degradado com as alterações climáticas. Além disso, o aumento da temperatura, por exemplo, afeta diretamente a fotossíntese das plantas, alterando seu crescimento e desenvolvimento. O prejuízo faz com que os agricultores necessitem redesenhar suas estratégias de plantio e pecuário. Essa realocação acarreta em perdas significativas na produtividade, na qualidade dos produtos e, consequentemente, na safra de alimentos.
Os polinizadores, que desempenham papel ecológico na fecundação e manutenção da produção da maioria das culturas agrícolas, têm sua reprodução e sobrevivência prejudicadas pelas altas temperaturas. “Tem um conjunto de insetos, animais superimportantes para a polinização, que estão sendo extintos por conta do avanço desse mesmo tipo de agricultura. Então, as estiagens mais prolongadas cada vez mais ou as chuvas muito concentradas e muito fortes, tudo isso impacta a agricultura, a produção de alimentos”, explica Búrigo.
Em uma pesquisa cooperativa entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), foi comprovado que as mudanças climáticas já têm causado mudanças significativas no comportamento de doenças tropicais que afetam diversas culturas agrícolas no Brasil. O aumento da temperatura, da umidade e a irregularidade das chuvas têm favorecido, por exemplo, a disseminação de fungos em lavouras de abacaxi, banana, mamão, café e cajueiro, além de interferirem no controle de doenças em culturas como cana-de-açúcar, citros, videira e mandioca.
Soja, milho, café e arroz são algumas das culturas mais impactadas pelas mudanças climáticas, o que compromete tanto a produção, quanto a alta dos preços desses produtos. O ovo de galinha e o café moído figuram entre as dez maiores altas registradas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) em março de 2025.
[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Agronegócio x Agricultura Familiar
Ainda que o setor agrícola tenha grande abrangência na economia nacional, vale ressaltar que a agricultura familiar responde por 67% das ocupações no campo, divididas por 3,9 milhões de estabelecimentos rurais no Brasil e ocupa 23% das áreas cultivadas do país, segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
A agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros, como feijão, arroz, milho, leite, batata, mandioca, segundo o IBGE. Já o agronegócio é majoritariamente responsável pela produção destinada à exportação. De janeiro a março de 2024, as exportações brasileiras do agronegócio somaram US$ 37,44 bilhões.
Segundo Weruska Barrios, nutricionista e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão Estudos em Ciência, Cultura e Comida (ECCCo) da FSP-USP, “precisamos fomentar esse conceito de que a agricultura familiar não necessariamente é algo pequeno. Não, hoje os agricultores familiares estão muito estruturados, cada vez avançando mais”. Ainda de acordo com a entrevistada, esse avanço é importante para viabilizar a compra de forma sustentável e a inserção no mercado de alimentos produzidos de maneira agroecológica.
O Plano Safra é um programa anual do governo federal federal que oferece recursos financeiros para apoiar a produção agropecuária no País, e na edição 2023/2024, destinou R$ 400,59 bilhões para o agroempresarial. Porém, os valores relacionados aos produtores menores totalizam R$ 189 bilhões com taxas controladas, direcionados para o Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp).
André Búrigo explica que há dois tipos de Plano Safra – o para o agronegócio e o para a agricultura familiar. “O meu elogio vem da possibilidade de pensar o Plano Safra diferenciado, ainda que existam muitas críticas importantes e que fazem todo sentido ao Plano Safra da agricultura familiar. Muitas vezes ele é executado na mesma lógica do Plano Safra geral, que vem um pouco na ideia da indução via bancos. Isso faz com que os pequenos agricultores mais pobres não consigam acessar esse crédito.”
[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Alterações e insegurança
Segundo autores do Painel, as mudanças climáticas observadas já afetam a segurança alimentar, com impacto nos preços dos alimentos e na redução da qualidade nutricional das refeições, e com maior vulnerabilidade na produção de frutas e vegetais, um componente-chave de dietas saudáveis.
Conforme a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), a segurança alimentar ocorre quando todas as pessoas têm acesso físico, social e econômico permanente a alimentos seguros, nutritivos e em quantidade suficiente para satisfazer suas necessidades nutricionais e preferências alimentares, tendo assim uma vida ativa e saudável.
O Programa Alimentar Mundial da ONU, que presta assistência alimentar para milhões de pessoas em situação de emergência, afirma que as pessoas com maior insegurança alimentar vivem nas áreas mais pobres e marginais da Ásia (altas taxas de pobreza e altas magnitudes de desastres afetando o acesso a alimentos), África (especialmente a parte Subsaariana, onde comunidades com maior vulnerabilidade vivem em ambientes altamente degradados) e América Latina (pessoas vivendo em ambientes urbanos e rurais pobres).
[Imagem: Reprodução/Governo Federal]
Segundo a metodologia da FAO, a insegurança alimentar severa é quando a pessoa está de fato sem acesso a alimentos, e passa um dia inteiro ou mais sem comer. Representa a fome concreta que, se mantida regularmente, leva a prejuízos graves à saúde física e mental, sobretudo na primeira infância, no desenvolvimento e na formação cognitiva.
Impactos na saúde
A insuficiência no consumo de nutrientes essenciais devido à má qualidade da alimentação é um fator crucial que agrava doenças. O Guia para a Organização da Vigilância Alimentar e Nutricional na Atenção Primária à Saúde, do Ministério da Saúde, esclarece que as deficiências de micronutrientes, como vitaminas e minerais, têm consequências graves para a saúde da população.
A carência de micronutrientes, como ácido fólico, iodo, zinco, selênio, cálcio e fósforo, está diretamente ligada a problemas de saúde graves. Entre eles, má-formações em bebês, bócio, baixa imunidade e fragilidade óssea. Mesmo em pequenas quantidades, esses nutrientes são essenciais — e sua ausência revela desigualdades no acesso a uma alimentação adequada.
As doenças alimentares não afetam apenas a saúde da população, mas também pressionam o orçamento do SUS. Um estudo de 2020 estimou que, em 2018, o SUS gastou R$ 3,45 bilhões com essas três condições graves relacionadas à má alimentação, sendo 59% com hipertensão, 30% com diabetes e 11% com obesidade.
Os impactos das mudanças climáticas também refletem no aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, ricos em aditivos, açúcar e sódio. Segundo Búrigo, a falta de mecanismos do governo para garantir acesso de alimentos de qualidade favorece o crescimento destes produtos prejudiciais à saúde. “As pessoas estarão, talvez, saciando a sensação de fome, mas elas não vão estar avançando para a segurança alimentar e nutricional. Pelo contrário, vai viciar essas famílias.”
Além das consequências para a saúde, Weruska explica que a produção dos ultraprocessados também atinge o meio ambiente: “Quando se fala de ultraprocessados, às vezes lembramos só do produto final. Mas, na verdade, esse olhar está desde a produção. Tem a produção de monocultura, soja, milho para abastecer essa indústria e tudo que vai caminhando até chegar no pacotinho. Isso tem um impacto de 21% na pegada ambiental anual.”
Papel da agroecologia
A agroecologia estuda a agricultura por uma perspectiva ecológica e a interação entre agricultura e meio ambiente. Weruska define como “uma agricultura natural, aquela que promove, estimula uma sinergia entre os sistemas de produção, entre o agricultor, entre o produtor e o seu cultivar. Há essa conexão do produtor, o agricultor com a terra, com os diferentes mecanismos de vida que tem nesse ambiente.”
O Núcleo de Pesquisa e Extensão ECCCo, do qual Weruska faz parte, se dedica há incentivar o diálogo entre produtores e consumidores, através de feiras, oficinas e visitas técnicas, olhando para toda a cadeia produtiva. O objetivo é promover espaços de conversa e estreitar a distância entre o produtor e o consumidor final.
Weruska esclarece que, apesar do imaginário social, nem toda agricultura familiar é agroecológica. No entanto, a transição para o modelo mais sustentável vem aumentando: “A agricultura familiar, ela tem essa característica, cada vez mais vemos que os grupos estão em transição agroecológica ou já estão, de fato, com a produção agroecológica em si. O que é um desafio muito grande, porque produzir de forma orgânica não depende só de você, depende também do seu entorno.”
Para Búrigo, “a agroecologia contabiliza que aqueles alimentos sejam portadores de diferença social, sejam alimentos que não sejam portadores de violência doméstica, que não sejam portadores de violência de assédio do trabalho ou até trabalho escravo. Então a agroecologia incorpora valores sociais, ambientais, muito importantes, que precisam ser considerados numa comparação entre modelos de agricultura.”
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