
O Núcleo de Apoio à Difusão de Informações sobre a Comissão Nacional da Verdade – Brasil (Nace CNV-Brasil) apresentou em sua plataforma digital uma nova coletânea de documentos que registram interações diplomáticas entre os Estados Unidos e os governos brasileiros da época da ditadura cívico-militar. A apresentação do acervo marcou a abertura do seminário 40 anos da redemocratização brasileira: ditadura e democracia em perspectiva comparada (1985-2025), que ocorreu no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP em 24 de março.
Coordenado por docentes do IRI, o Nace é integrado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) e tem por finalidade “a coleta, sistematização e difusão de documentos e informações correspondentes às atividades e ao relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV)”, como descrito em seu site oficial. O acervo do Núcleo, formado por documentos nacionais e estrangeiros das décadas de 1964 a 1988, está organizado na plataforma digital do Nace, que conta com recursos de busca e filtros para facilitar o trabalho de pesquisadores interessados em desenvolver trabalhos sobre o tema.
“O acervo do Nace nos permite um olhar sobre a ditadura brasileira que nenhum outro tipo de documentação nos oferece. Temos interações norte-americanas desde a alta cúpula do regime, como presidentes, ministros e chefes de exército, a jornalistas, empresários, intelectuais e lideranças sindicais”, explicou Felipe Loureiro, vice-coordenador do Nace.
Para o também docente do IRI, a plataforma é um prato cheio para estudantes e pesquisadores que se interessam por esse recorte da história brasileira — especialmente por se tratarem de documentos pessoais dos políticos, que são inéditos no território nacional. Felipe explica que os documentos revelam uma forte intervenção dos EUA para a derrubada do governo de João Goulart, mas um afastamento do país norte-americano à medida que o regime ditatorial brasileiro passou a acirrar suas próprias convicções autoritárias. “O acervo é muito mais profundo sobre os anos 60 e início dos anos 70 do que sobre o período final da ditadura, porque grande parte dos documentos a partir de 1975 ainda estão fechados”, explica. Além disso, o Núcleo solicitou a liberação desses papéis datados a partir da década de 70, mas não há previsão de quando serão liberados do sigilo.
Felipe conta que os registros foram obtidos em bibliotecas presidenciais e arquivos históricos, com a permissão de órgãos dos EUA. A iniciativa partiu do próprio docente, que tem sua pesquisa voltada para o tema e conseguiu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e aval das autoridades estadunidenses.
“Em um contexto em que temos atores questionando o valor da democracia e relativizando o autoritarismo da ditadura, esse acervo é um repositório muito rico para informar a sociedade brasileira sobre o quão violento, autoritário e repressivo foi o regime de 64.”
Felipe Loureiro, vice-coordenador do Nace CNV-Brasil
A Comissão Nacional da Verdade
Criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) apurou as violações cometidas pelo Estado Brasileiro nos 21 anos de ditadura militar. Pedro Dallari, diretor do Instituto de Relações Internacionais da USP e coordenador do Nace, foi nomeado em 2013 para coordenar a Comissão da qual também foi o relator.
Em dezembro de 2014, a CNV emitiu três relatórios sobre o regime. Dividido em cinco partes, o primeiro trata da criação da Comissão e as dinâmicas do Estado sob o regime da época, incluindo suas opressões e crimes contra os Direitos Humanos. O segundo relatório traz uma série de violações do governo militar sobre diferentes grupos da sociedade brasileira, como religiosos, universitários e povos originários, além de reconhecer o caráter cívico-militar do período.
O último volume apresenta uma relação completa dos mortos e desaparecidos políticos entre 1950 e 1985. Entre eles, Rubens Beyrodt Paiva, deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que teve sua morte retratada no livro Ainda Estou Aqui, de seu filho Marcelo Rubens Paiva. A obra ganhou reconhecimento internacional com o filme de mesmo nome, dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres, que protagoniza a mãe de Marcelo e esposa de Rubens, Eunice Paiva. “A força do relatório está justamente em se despir de qualquer avaliação ou juízo que possa contaminá-lo sobre a brecha de documento ideológico”, explicou Pedro Dallari, no seminário do IRI, em março deste ano. Uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em dezembro de 2024, alterou a certidão de óbito do ex-deputado e reconheceu que sua morte foi “causada pelo estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964.”

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