Cidades brasileiras recebem fluxo maior de imigrantes mas ainda sem políticas adequadas

Pesquisadora da USP analisa o caso de Caxias do Sul (RS) a fim de traçar o cenário encontrado pelos novos imigrantes no Brasil

Entrada de imigrantes, principalmente africanos, aumentou nos últimos anos em Caxias do Sul (Rio Grande do Sul). Na imagem, Ganeses que vieram para Copa do Mundo de 2014 solicitam refúgio no Brasil. Foto: Luiz Carlos Erbes/Câmara Municipal de Caxias do Sul.

Ao longo de sua história, o Brasil vem recebendo uma expressiva quantidade de imigrantes em suas terras, trazidos pelas mais diversas motivações. Se no século 19 o predomínio foi de europeus e japoneses, os novos migrantes que chegam ao país vêm principalmente dos países vizinhos ou da África. No entanto, essa nova migração traz consigo uma série de novas questões e desafios, que foram estudados por Isadora da Silveira Steffens em seu mestrado no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP.

Com o título “Mobilidade humana internacional sob a perspectiva das políticas locais: um estudo de caso de Caxias do Sul”, a pesquisa traça um panorama da cidade brasileira a fim de entender algumas especificidades do momento atual relacionado à recepção de novos imigrantes no Brasil. “A cidade é um caso interessante por ter um histórico de migração italiana, que não vinha recebendo um fluxo importante de migrações internacionais nas últimas décadas, mas que agora se depara com uma nova chegada de imigrantes, principalmente haitianos, senegaleses, ganeses e sul-africanos”, explica Isadora.

A pesquisadora salienta também que o caso da cidade é ainda mais emblemático por ser um município com população majoritariamente branca recebendo um número considerável de imigrantes negros. A visibilidade da questão ficou muito evidente após vários casos de racismo serem reportados.

A principal conclusão da pesquisa foi que, embora se constate uma necessidade de políticas na cidade para essa população, parece haver ainda hoje uma falta de vontade política e uma ativa omissão nesse âmbito. Isadora explica que Caxias do Sul é um pólo regional equipado e com um orçamento elevado, fato que demonstraria ainda mais essa falta de vontade política. “Várias políticas para migrantes, que exigiriam pouco aporte financeiro ou remanejamento dos serviços públicos, não são realizadas. O diálogo entre os diferentes serviços, a contratação de tradutores e a formalização de cursos de português, que são serviços de baixo custo e seriam facilmente organizados, são exemplos de ações que não foram realizadas em momento algum”.

Como resultado dessa não-política, foram notadas dificuldades de acesso muito comuns e recorrentes aos serviços públicos por parte expressiva dos imigrantes, ainda que esses formem um grupo heterogêneo. Segundo a pesquisadora, o desafio dos serviços públicos, portanto, seria se adaptar para garantir a isonomia. “Igualdade não é oferecer o mesmo serviço para todos, mas garantir que as pessoas tenham as mesmas condições materiais de acesso e respeitar a diversidade. Logo, é necessário que se façam políticas específicas que garantam o acesso dos imigrantes”.

Isadora expõe que a responsabilidade por essas políticas deveriam ser compartilhadas pelos poderes públicos, ainda que grande parte delas inclua o nível municipal, já que é onde se efetiva a inclusão de imigrantes. Ela percebeu, no entanto, que a Prefeitura entende a questão da migração como uma responsabilidade principalmente da esfera federal. “Há um embate bem forte entre as esferas e são comuns falas como ‘nunca deixamos eles entrarem, já que não somos responsáveis por regular as fronteiras”. Ela conta que havia até um certo medo por parte do prefeito da cidade em tomar ações juntamente a União, pois com uma possível mudança de governo, o encargo financeiro ficaria apenas com o município.

Atendimento a imigrantes de Gana com sintomas de gripe, que estavam hospedados no Seminário Nossa Senhora Aparecida, no bairro Colina Sorriso, em Caxias do Sul. Foto: Andressa Gallo/Prefeitura de Caxias do Sul.

Embates locais

Durante a pesquisa, Isadora constatou que os embates acerca da temática não se restringiam ao âmbito governamental, reproduzindo-se também no nível local. Quanto a isso, ela notou haver, de um lado, uma parcela que defende ativamente uma política para migrantes, enquanto outra é contra, seja através da criminalização dessa população ou sob a justificativa de que essa política é desnecessária. No discurso contrário, a pesquisadora percebeu um entendimento comum de que, se fosse feita uma política específica para esse público, a cidade atrairia mais migrantes, o que seria indesejável.

Ao mesmo tempo, ela notou que a sociedade civil e os imigrantes são bem organizados e mobilizados em Caxias do Sul, levando-se em consideração o tamanho da cidade e o tempo que o município recebe imigrantes, sendo um novo destino migratório. Isadora explica que justamente por isso, o diálogo em Caxias do Sul acerca da temática é ainda difícil. “É um embate constante, sendo que só existe cooperação em momentos emergenciais e de crises, nos quais a Prefeitura se vê obrigada a cooperar com a sociedade civil. Mas não é um diálogo duradouro e, com certeza, nada amigável”.

Quanto à discriminação, ela relata que mesmo quando os imigrantes começaram a chegar e havia uma abundância de empregos com baixa qualificação na cidade devido ao fato de Caxias do Sul ser um cidade industrial –, podia-se constatar, especialmente no âmbito de trabalho, fortes traços de racismo e de preconceito.

Para corroborar essa questão, Isadora apresenta uma pesquisa realizada pela Faculdade da Serra Gaúcha (FSG), com o auxílio do Ministério Público Federal, na qual foi possível se perceber uma forte relação entre os imigrantes empregados formalmente e os que já haviam sofrido algum tipo de discriminação. “Entrevistei também um advogado trabalhista que presta serviços para imigrantes e um funcionário do Ministério do Trabalho. Eles me relataram essa questão da discriminação no trabalho, que diferentemente de outros âmbitos, é muito explícita. Isso porque já existe uma segregação em relação ao trabalhador na cidade, agravada quando os empregadores acreditam que a pessoa não tem tanto conhecimento ou redes sociais para auxílio.”  Ela explica também que mesmo antes da redução do número de empregos ocorrida com a crise, muitos dos imigrantes, ainda que com qualificação, não conseguiam se empregar em suas áreas de origem, por não conseguirem revalidação de diploma, não terem redes sociais na cidade ou por preconceito. Com a crise a situação se complicou ainda mais.

Ainda que os resultados da FSG não tenham constatado um índice tão alto quanto se esperava em relação ao número de imigrantes que informaram ter sofrido discriminação, Isadora se deparou nas entrevistas com situações discriminatórias envolvendo tanto ações rotineiras quanto até mesmo os serviços públicos.  

Ela salienta contudo que esse ambiente de discriminação convive ao mesmo tempo com o histórico de imigração italiana de Caxias do Sul, do qual sua população se orgulha. “É muito forte a questão do mito fundacional da cidade: o mito do imigrante pioneiro que não tinha nada e com suas próprias mãos construiu uma cidade, que trouxe desenvolvimento para a região. Nesse mito, portanto, há muito a questão de colocar o italiano como muito trabalhador”.

De acordo com Isadora, talvez por isso, o preconceito e xenofobia da população se mascare em partes quando são salientados traços que supostamente representariam imigrantes trabalhadores. Esses elementos serviriam, portanto, como uma espécie de contrapeso. “O fato de haver alguns imigrantes que não bebem, não fumam, não vão a festas, são muito religiosos e que se vestem com camisa social, facilitou a associação por parte de algumas pessoas de que esses imigrantes seriam respeitosos e que trabalham arduamente. É muito forte a concepção de ‘ele é haitiano, mas é trabalhador; ele é senegalês, mas é muito respeitoso'”.

A pesquisadora relembra uma reportagem veiculada no programa Fantástico, da Rede Globo, que mostrou várias pessoas na rua falando barbaridades a respeito dos imigrantes. “Um vereador falou em uma reunião da Câmara: ‘vieram trazer mais pobreza e por isso a gente não é favorável a essas pessoas aqui.’ O prefeito deu declarações que foram considerados xenófobas.” Contudo, Isadora colheu, em suas entrevistas, relatos de mudança brusca na cidade após a reportagem. As pessoas passaram a tomar o cuidado de ter um posicionamento politicamente correto, ainda que continuassem a serem relatados casos de discriminação.

O processo de pesquisa

Em sua análise, Isadora recorreu principalmente a entrevistas para alcançar os resultados apresentados. No total, a pesquisadora realizou 30 entrevistas. Além disso, utilizou-se também de notícias em sua dissertação. “Eram muitas coisas acontecendo e busquei observar como a mídia se posicionava frente à questão das migrações.”

As entrevistas foram realizadas com atores da sociedade civil, imigrantes líderes de associação, agentes da ponta dos diferentes serviços da Prefeitura que atendiam imigrantes, o ex-prefeito de Caxias do Sul e outros agentes-chave da política local. O objetivo principal dessa etapa era “entender a questão do acesso aos serviços e como o discurso em torno da política e da não-política para migrantes era narrado”, explica Isadora.

Ela relembra que uma das maiores dificuldades encontradas foi lidar com a grande quantidade de material coletado, que abrangia em torno de 40 horas de entrevistas. Para organizar essa rica massa de material, a pesquisadora recorreu a métodos de categorização e de criação de indicadores.

Isadora recorda também que, desde a  entrada no mestrado, já tinha em mente realizar pesquisa de campo. Isso foi  deixado claro para sua orientadora, Deisy Ventura, desde o início. “A experiência de ter feito uma pesquisa em que o tempo inteiro estava em contato com a realidade direta das pessoas, além das entrevistas, é muito rica. Era exatamente o que buscava com o mestrado: sair um pouco da bolha da academia e conseguir tanto fazer uma pesquisa que tivesse uma aplicação prática, quanto conseguir absorver esses conhecimentos que, às vezes, estão muito afastados do dia-a-dia.”

Um fato que contribuiu consideravelmente para os resultados alcançados foi, como citado pela pesquisadora, a experiência de trabalhar com políticas locais na cidade de São Paulo. Foi a partir daí que ela optou pelo foco nas políticas locais para migrantes. “Tive esse contato com o governo municipal principalmente através do Cosmópolis, um convênio do IRI com a Prefeitura de São Paulo, que recentemente lançou seu relatório final”. O trabalho, do qual Isadora participou por um ano e meio, apresenta um rico panorama sobre o acesso dos imigrantes aos serviços públicos na capital paulista. “A experiência paralela a dissertação, de participar desse projeto de extensão e de estar sempre em contato com a sociedade civil, tanto de São Paulo quanto de Caxias do Sul, além de organizações internacionais, foi essencial para minha pesquisa”.

Isadora participou ainda como representante do grupo no Comitê Intersetorial de Políticas para Migrantes, que contou com pessoas da sociedade civil, acadêmicos, funcionários do governo municipal e de organismos internacionais. Foi de lá que saiu a lei que institui a política municipal para migrantes, aprovada no último ano do governo de Fernando Haddad. “A atuação foi importante porque me permitiu conhecer o funcionamento dos processos de negociação entre sociedade civil e poder público, embora em um contexto completamente diferente”.

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