Uma pesquisa encabeçada pelo Observatório dos Impactos das Novas Morfologias do Trabalho sobre a Vida e Saúde da Classe Trabalhadora, ligada ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, revelou que, apesar das múltiplas vantagens trazidas pelo avanço das tecnologias no mundo do trabalho, houve um grande e delicado impacto negativo: a saúde mental dos trabalhadores piorou. Com a adoção dessas tecnologias no ambiente do trabalho, somado à inserção do modelo híbrido ou efetivamente remoto, a classe trabalhadora viu o crescimento das demandas e a diminuição da barreira entre a vida pessoal e a vida profissional.
Traçando um panorama contextual, a pesquisa revelou três períodos históricos distintos que se relacionam diretamente com o mundo do trabalho. Durante a década de 1970 até 1980, o modelo econômico predominante era o liberalismo e programas de bem-estar social se destacavam na política, principalmente nos Estados Unidos. Do ponto de vista do trabalho, predominava-se o emprego formal, a regulação e forte sindicalização. Já nos anos 1980 até 1990, o neoliberalismo ganhou força, com o início dos processos de privatizações de empresas e serviços, o aumento no emprego informal e a terceirização. Por fim, com a chegada do novo século e o surgimento das primeiras tecnologias, predominou-se, no campo trabalhista, o desemprego, o subemprego e o teletrabalho.
Segundo o professor e pesquisador da área de Saúde do Trabalhador do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do IEA, Sérgio Roberto de Lucca, essas mudanças tanto sociais quanto econômicas alteraram o mundo do trabalho e suas relações. Inicialmente, destacava-se o modelo fordista e taylorista, com maior cooperação e solidariedade entre os trabalhadores. Com a chegada do toyotismo, observou-se um aumento na flexibilidade do trabalho, ao mesmo tempo em que os indivíduos tornaram-se mais individualistas em relação às suas funções em seus empregos. “A partir desse momento, em que as tecnologias se inserem cada vez mais no ambiente de trabalho, podemos observar a quebra da noção do coletivo e a subjetividade dos trabalhadores é completamente capturada, tornando-os meros colaboradores nesses locais”.
Ainda sob uma perspectiva histórica, Sérgio destaca que dentre os anos 1970 até 1990 os principais fatores de adoecimento dos trabalhadores estavam relacionados aos acidentes físicos, doenças profissionais, exigências físicas e desgaste do corpo, todos esses relacionados à predominância de trabalhos manuais. Atualmente, dentre os fatores de adoecimento, destacam-se os ligados à saúde mental, como transtornos psíquicos e emocionais. Essa mudança, segundo o pesquisador, está intimamente relacionada a dois fatores: a inserção de tecnologias em todos os aspectos da vida dos indivíduos, inclusive no trabalho, e o aumento dos modelos de trabalho híbridos ou totalmente remotos, que se deu especialmente no período durante e após a pandemia de covid-19.
O professor destaca que, com a adoção de modelos de trabalho home office, o trabalho passou a invadir a casa das pessoas, um ambiente que antes era visto como local de “fuga” dos estresses do dia a dia, que frequentemente estavam ligados às suas profissões. “A partir desse momento, os indivíduos passam a sentir que não há uma verdadeira diferenciação entre o trabalho e a vida pessoal: como sua casa torna-se um local de trabalho também, há um sentimento de impossibilidade de ‘desconexão’, e o trabalho parece se estender ao longo das 24 horas de seus dias. Isso impacta diretamente na saúde mental dos empregados, que se veem presos intermitentemente aos seus empregos”.
O analista judiciário do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas e integrante da pesquisa, Fauzi El Kadri Filho, produziu um relatório ligado ao subcomitê de combate ao assédio ligado ao Tribunal em 2022, que revelou números alarmantes sobre as relações de trabalho atuais. Dentre 1023 participantes do questionário, 23,7% relataram práticas nocivas à saúde mental, emocional e à individualidade no ambiente de trabalho. Dessa porcentagem, 43,7% relataram cobrança excessiva de resultados, em especial após a adoção de modelos híbridos de atuação. Isso se explica em certo sentido, segundo ele, no fato de que “quando estamos em casa, há essa ideia de que é muito mais fácil ser produtivo, já que não foi necessário se deslocar até o local de trabalho, o que nem sempre se confirma”.
Para os pesquisadores do observatório, a inserção das novas tecnologias somada ao aumento de modelos de trabalho remoto são fatores decisivos para o declínio na saúde mental dos indivíduos. Segundo a fisioterapeuta formada pela Unicamp e membro do IEA, Alexandra Antunes Setta, a posição adotada pelas empresas frequentemente demonstra a chamada “autonomia paradoxal”, ou seja, uma diferença entre as normas prescritas e percebidas. “Essas empresas fornecem aparelhos específicos para realização do trabalho, como celulares ou computadores pessoais. Elas também alegam que não é aceitável responder mensagens e demandas após o fim do expediente, mas o que se percebe pelos empregados é que existe sim uma pressão para que aquela pendência seja resolvida o mais rápido possível, independentemente se a carga horária já foi esgotada ou não. E isso está ligado não só ao ambiente de trabalho em si, mas à tecnologia também, que gera essa expectativa coletiva de conectividade e imediatismo”.
Setta destaca que, dentre os principais pontos negativos que o avanço das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) trouxeram ao trabalhador destacam-se o aumento da expectativa de disponibilidade, o prolongamento da jornada de trabalho, a cobrança de rapidez na resolução de problemas, a intensificação do controle e a dificuldade no distanciamento mental. “Atualmente, estamos sempre pensando no trabalho. São grupos no Whatsapp para falar do trabalho, são e-mails que chegam no seu celular sobre o trabalho, são reuniões que são feitas nos aparelhos que você carrega consigo no seu dia a dia. Dessa forma, a barreira entre vida pessoal e profissional torna-se cada vez mais enfraquecida, e não existe psicológico que aguente essa rotina por tanto tempo”.
Ainda assim, existem maneiras de tentar controlar os impactos negativos para a saúde mental que podem ser adotadas pelas empresas. A pesquisadora afirma que a principal delas é por meio do respeito ao direito de desconexão dos trabalhadores. Para ela, é necessário que esses agentes comecem a repensar o mais rápido possível sobre suas condutas para com seus empregados, caso não queiram ver o início de um afastamento em massa por problemas psicológicos e emocionais.
Faça um comentário