Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP demonstrou que a internet é mais um ambiente hostil para o público femino, que reproduz misoginias observadas também no mundo offline. A iniciativa da Cátedra Oscar Sala revelou um aumento no número de denúncias de violência contra mulher no ambiente digital, como, por exemplo, a prática da perseguição chamada stalking, ainda que a legislação brasileira esteja atualizada com o avanço da internet.
De origem na Grécia Antiga, “misoginia” é uma junção dos termos miseo, relativo ao ódio, e gyne, que significa mulher. Apesar de ser um ambiente relativamente recente, que ganhou força na virada dos anos 1990 para os anos 2000, a internet, desde seu surgimento, revelou-se hostil ao público feminino. Segundo a pesquisa do IEA, encabeçada pela coordenadora do InternetLab, Clarice Tavares, casos de violência contra as mulheres em ambiente digital podem ser encontrados desde o ínicio da internet em solo brasileiro. Em 2002, fotos de uma câmera escondida feitas em um espaço reservado durante a festa “VX Giovanna”, promovida pelo centro acadêmico da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, circularam nos emails de professores e estudantes da instituição. Apenas em 2014, 12 anos após o ocorrido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) condenou o diretório acadêmico da FGV a pagar R$ 50 mil em indenização a uma estudante que teve suas fotos vazadas sem consentimento.
Ainda traçando uma linha do tempo que relaciona a origem da internet com casos de misoginia, Tavares destaca outro episódio emblemático. Em 2005, a jornalista Rose Leonel teve fotos íntimas, dados pessoais e de contato vazados pelo seu ex-companheiro após o fim do relacionamento. Em 2010, o homem foi condenado a dois anos de prisão e, em 2018, o Senado aprovou uma lei que leva o nome da jornalista, a Lei Rose Leonel, que criminaliza a divulgação de imagens íntimas de mulheres.
Para a pesquisadora do IEA, o intervalo entre as violências e a condenação pela Justiça é sintomático de uma sociedade que passou a encarar tais atos como verdadeiras violações apenas recentemente. “Os primeiros episódios não eram necessariamente encarados como misoginia, pois por muito tempo encarávamos essa ideia como ligada a violência física, doméstica ou sexual. Reconhecer que uma violência pode também acontecer em ambiente virtual, que a misoginia existe e persiste nesses espaços, é um fenômeno relativamente recente. Hoje em dia temos maior facilidade em reconhecer um ato de violência que está acontecendo pois há pouca diferenciação entre a vida online e offline”.
Daniela Osvald, professora de educomunicação na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e participante da pesquisa sobre violência digital contra mulheres, destaca três eixos que podem ser observados na sociedade como um todo: a misoginia como limitante do espaço ocupado por mulheres; a violência cultural; e a violência direta. “A violência cultural, que antes se reproduzia nas novelas de televisão, encontra uma nova fronteira no digital: ganha-se uma nova força, que de forma coordenada limita o espaço das mulheres na internet, ainda que essas sejam maioria, tanto no mundo real quanto no mundo virtual”.
Segundo o Anuário de Segurança Pública de 2024, modalidades de violência contra mulheres que acontecem principalmente online e podem ou não escalar para ambiente externo, como o stalking, que teve aumento de 35% entre os anos de 2022 e 2023, com 77 mil registros novos. A divulgação de cenas de estupro, sexo ou pornografia teve um aumento de 47,8% no mesmo período, com 7 mil registros. Para a psicóloga e diretora de projetos especiais da Safernet e também participante na pesquisa do IEA, Juliana Cunha, reconhecer os tipos de violência é o primeiro passo, mas é indispensável o apoio da legislação. “A lei brasileira está relativamente atualizada e muitos dos comportamentos que eram observados na internet há 5, 10 anos, já são classificados como crimes”.
Dentre as principais leis de combate à violência contra mulher no ambiente digital estão a Lei dos Nudes, que desde 2018 tipifica como crime a divulgação de fotos ou vídeos de nudez ou sexo não autorizadas, com agravante caso o autor tenha relação com a vítima; a Lei Lola, aprovada também em 2018 e que atribui à polícia federal a investigação de crimes cibernéticos que espalham conteúdo misógino contra mulheres; a Lei Carolina Dieckmann, criada em 2012 após o vazamento de fotos íntimas da atriz e que almeja proteger mulheres de terem seus aparelhos invadidos; e a Lei do Stalking, que tipifica como crime a perseguição, tanto online quanto física. Para Cunha, “os desafios atuais da legislação cercam o uso de inteligência artificial como ferramenta de violação, com a criação de deepnudes, em que, a partir de imagens comuns, essas ferramentas produzem falsas imagens com teor sexual, e o principal alvo desse tipo de violência continua sendo o público feminino, em especial menores de idade, que são mais vulneráveis e possuem uma forte presença nas redes sociais”.
Durante a pesquisa, a professora de direito na Fundação Getúlio Vargas, Luiza Ferreira, destacou que existe uma quantidade especialmente grande de leis que amparam as mulheres no ambiente virtual, mas uma das razões para que casos continuem acontecendo é o fato de que há subnotificação, já que em muitas das vezes a vítima não quer levar o caso adiante por temer uma maior exposição. “Segundo uma pesquisa do eCGlobal Solutions sobre sexting no Brasil, a prática de sexo em ambiente virtual, cerca de 27% das mulheres entrevistadas possuem vídeos ou fotos pessoais envolvendo nudez. Isso não significa que essas imagens foram compartilhadas, ou que essa prática em si seja um crime, mas significa que esses conteúdos estão lá e representam um certo perigo ao público feminino”.
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