Insônia: o que tem nos mantido acordados?

Distúrbios do sono afetam três quartos da população brasileira, e têm graves implicações para a qualidade de vida

Uso excessivo de eletrônicos, estresse e ansiedade estão relacionados ao déficit de sono [Imagem: Reprodução/Freepik]

Por Diego Facundini, Gabriela Varão, Jônatas Fuentes, Lara Soares, Marcelo Teixeira e Nícolas Dalmolim

Viver com insônia não é uma tarefa fácil para Luís Guilherme Antunes. “Minha rotina de sono é completamente caótica. Não tenho muito hora para dormir, acordo com absolutamente qualquer coisa, um sono extremamente frágil”, relata. Professor universitário há 30 anos, atualmente luta para conciliar a rotina da vida acadêmica com o estresse e a ansiedade, principais perturbadores das suas noites de sono.

Antunes conta que as maiores crises de insônia começaram após uma mudança brusca em seu cotidiano. Ao mudar-se para uma nova casa, teve de deixar de lado a natação, sua fonte de atividade física. “Sempre coloquei o esporte logo na primeira hora da manhã. Como morava muito perto da piscina, acordava cedo, colocava o roupão e descia para nadar.” Para ele, a prática do esporte era fundamental para a regulação do seu sono. “Regulava o horário de acordar e, consequentemente, o de dormir. Nunca dormi maravilhosamente bem, mas conseguia, pelo menos, seis horas de sono sem nenhuma preocupação. Um mês depois que cortei o esporte, passou a ser uma desgraça.”

As sequências de noites mal-dormidas foram prejudicando cada vez mais a qualidade de vida de Antunes. Ele relata que, aos poucos, começou a notar os efeitos da insônia na sua saúde, como alterações de humor e perda de memória. “A insônia não acontece da noite pro dia. Você vai dormindo mal, vai dormindo pior, e isso começa a atrapalhar seu dia a dia. Os problemas vão crescendo de forma sutil, e é muito fácil não perceber e cair em armadilhas.” 

O professor testou inúmeros métodos naturais — chás, leitura, fitoterápicos, melatonina — mas nenhum surtia efeito. Foi então que decidiu buscar acompanhamento psiquiátrico e introduzir medicação específica. Hoje, Antunes consegue ter noites de sono com mais qualidade, mas seu maior receio é desenvolver tolerância à substância. “Se não estou com medicamento, meu problema é qualquer pensamento, qualquer chamada. Mesmo que não seja urgente, mesmo que não seja importante, ela me tira o sono”.

Segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 72% dos brasileiros sofrem com distúrbios relacionados ao sono. A insônia, o mais comum, já afeta cerca de 73 milhões de brasileiros, de acordo com a Associação Brasileira do Sono (ABS).

“A insônia é bastante democrática”, comenta Geraldo Lorenzi Filho, professor associado da Faculdade de Medicina da USP (FM) e doutor em medicina do sono. Ele explica que a condição pode se expressar de três maneiras distintas: “Dificuldade para iniciar o sono, dificuldade para manter o sono ou um despertar muito precoce, fora do horário que você quer acordar e que cause prejuízo durante o dia, como cansaço, indisposição, falta de concentração ou até mesmo sonolência”. 

O professor, além de já ter sido presidente da ABS, também é fundador e diretor do Laboratório do Sono do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas (HC) da FM, que atende pacientes tanto da rede pública quanto privada, como também para fins de pesquisa. Em operação desde 1999, o Laboratório é especializado nas polissonografias, exames que avaliam a qualidade do sono.

Os ‘Ps’ da insônia

Na área da psicologia, um dos modelos mais utilizados para explicar o surgimento da insônia é a “teoria dos três Ps”, proposta pelo pesquisador Arthur Spielman. De acordo com ele, a doença pode surgir a partir de fatores de predisposição (próprios da pessoa), precipitação (desencadeadores) e perpetuação (ligados a maus hábitos).

Em entrevista à AUN, Renatha Ferreira, professora do Instituto de Psicologia da USP (IP) e pesquisadora do Laboratório do Sono, explica cada um desses elementos. Segundo ela, a predisposição não está apenas atrelada ao comportamento hormonal, mas também a características emocionais. “Uma pessoa muito ruminativa, que pensa e se preocupa demais, já tem uma tendência maior à insônia”, comenta.

A psicóloga também liga alguns eventos de estresse emocional à falta de sono, como divórcios, diagnósticos de doenças, crises financeiras e pandemias. Até acontecimentos positivos entram na lista: a expectativa por uma promoção no trabalho, por exemplo, pode precipitar a doença.

Além disso, de acordo com Renatha, algumas estratégias conhecidas por combater a falta de sono podem, na verdade, perpetuá-la. Ficar tempo a mais deitado para recuperar uma noite mal descansada é uma delas. “Se ficar forçando o sono, você cria uma relação ruim com a cama e não consegue dormir”, afirma a professora.

Renatha aponta que ir para a cama mais cedo do que na noite anterior não é garantia de dormir melhor [Imagem: Reprodução/Freepik]
Cobrar-se por não repousar o suficiente também pode ser prejudicial para quem tem insônia, sobretudo quando ela está ligada à excitação cognitiva, ou seja, a ações que deixam o cérebro em estado de alerta. “A excitação fisiológica e de pensamentos muitas vezes concorre com o processo natural de adormecer, que é de relaxar”, comenta Renatha.

“É como se fosse assim: quando você sente que ‘liga o dane-se’ para o sono, você dorme.”

Renatha Ferreira, professora do departamento de Psicologia Clínica da USP

Alguns transtornos mentais, como ansiedade e depressão, possuem o que a psicóloga chama de “relação bidirecional” com a insônia, porque podem ser tanto sua origem como seus efeitos. “Algumas das consequências da privação do sono são prejuízos no humor, falta de concentração, prejuízos na memória e prejuízos cognitivos. Ela acaba afetando até as relações sociais: quem não dorme bem falta no trabalho e vai mais ao médico”, explica.

As fontes da insônia

“Dormir não é que nem desligar uma lâmpada, é mais um dimmer, que você vai reduzindo até dar o clique”, comenta Lorenzo Filho. “Então a gente pede que, pelo menos uma hora antes de dormir a pessoa se afaste de mídias sociais, de computadores, faça uma leitura com luz indireta, sem interações maiores para ir diminuindo sua rotação até o momento que está mais propensa a dormir”. Segundo ele, com o advento das novas tecnologias, muitos fatores têm afetado esse processo de relaxamento pré-sono. 

Um dos maiores elementos relacionados a isso é a luminosidade. O ciclo circadiano se regula principalmente a partir da luz e cor do ambiente, com ênfase nos períodos pouco antes ou após o sono. É importante ser exposto a luzes mais fracas e menos azuis antes de dormir, e luzes mais fortes ao acordar.

O professor afirma que exposição a telas pouco antes dormir pode, no entanto, inibir a produção da melatonina, o hormônio responsável pelos ciclos biológicos do corpo e pela regulação do sono. A tela basicamente engana o organismo: “A gente foi feito, normalmente, para dormir à noite, e existe uma diminuição da quantidade de luz com a qual seu organismo percebe que está escuro. Quando você recebe uma quantidade maior, você inibe a produção de melatonina.”

O problema se estende além da exposição passiva à luz. O especialista comenta que o uso de computadores ou celulares também traz junto uma série de excitações ao organismo: “Antigamente a gente achava péssimo televisão porque ela atrai a atenção, mas quando você tem uma interação direta, através do celular, de várias plataformas, o nível de excitação é muito maior. Você é arrastado.”

Largar é difícil

Estes são fatos constantemente repetidos em discussões sobre o sono, e de fato são importantes de serem considerados na procura de um sono melhor. Porém, é importante lembrar que estes hábitos nem sempre são puramente escolhas individuais. Se uma pessoa tem dificuldade de continuar dormindo em ambientes iluminados, ficar com as persianas abertas pode impedi-la de ter todas as horas de sono que gostaria. Ou, se uma pessoa vê a necessidade de utilizar telas até o último momento do dia (seja por trabalho ou para usos sociais), simplesmente “não usar o telefone” pode não ser uma opção.

Para muitas pessoas, especialmente as mais jovens, negar o acesso ao telefone não é algo tão simples. Em muitos casos se trata do único meio de comunicação que a pessoa tem, além de ser a fonte de quase todo o entretenimento que consome. Num contexto em que a pessoa já utiliza o telefone em quase todos os seus momentos livres acordada, é irrealista pensar que os poucos minutos antes de dormir seriam uma exceção.  Porém, o problema do “vício” não se trata simplesmente de uma questão pessoal, mas sim de um malefício social geral trazido pelo modelo econômico da maioria das mídias sociais.

Em entrevista concedida à AUN, a pesquisadora Catiele Santos, especialista no efeito de redes sociais na psicologia de adolescentes, explica que elas “trabalham diretamente com a psicologia comportamental, estímulo e resposta. Elas dão exatamente o que a gente procura, no momento que queremos”. Assim, ao criar estímulos cerebrais positivos constantes, o uso dessas redes cria ciclos viciosos de condicionamento que é muito difícil de quebrar à vontade. “Nesse âmbito, quase se assemelha ao consumo de substância, a certo nível”, comenta Catiele.

A exposição às redes sociais também aumenta a autocobrança e a pressão para produzirem, já que há comparação com outros indivíduos. Na sociedade do cansaço, as pessoas buscam uma produtividade máxima, marcada pelo desempenho e pelo trabalho excessivo. Catiele afirma que “as redes sociais, e a sociedade como um todo, colocam a questão da produtividade tão em cima, que momentos de descanso podem parecer desnecessários”.

O resultado é o esgotamento, a exaustão, ansiedade e síndrome de burnout, pois o sono é deixado de lado para priorizar a produtividade. A especialista acrescenta que “o sentimento de estar sempre produzindo, estar sempre trabalhando para ser como os outros, pode levar muitos a verem o sono como algo inútil”.

Diagnóstico, tratamento e prevenção

O diagnóstico da insônia é feito de maneira clínica a partir da queixa do paciente. O tratamento padrão ouro para a condição, segundo Ferreira, é a Terapia Comportamental, cujas técnicas mais eficazes são a terapia de controle de estímulos e a terapia de restrição do sono. “A abordagem [de estímulos] acredita que a insônia é uma consequência de estímulos temporais e ambientais: se você deita na cama e dorme rapidamente, você faz uma rápida associação entre cama e sono. Agora, se você vai para cama e lê, come, estuda, mexe no celular e assiste a séries, você associa a cama com lugar de ficar acordado”. Segundo a especialista, uma das orientações seria ir para a cama apenas quando já se está com sono, e, caso, ele não aconteça em até 20 minutos, levantar e retornar quando estiver cansado o suficiente.

A queixa é feita quando o paciente relata dificuldade para dormir e prejuízos relacionados a isso [Imagem: Reprodução/Freepik]
A restrição de sono se soma a outro método, o controle de estímulos. Ainda, segundo ela: “A gente usa um diário de sono ou o exame de actigrafia para calcular quanto tempo se dorme de fato e quanto tempo se fica na cama. Então a gente troca uma privação parcial do sono para aumentar a nossa propensão de pegar no sono mais rápido para forçar a dormir mais rápido.”

De acordo com o professor Lorenzi Filho, o uso de medicamentos só deve ser feito sob acompanhamento médico e com muito cuidado, principalmente pela sua natureza viciante. Em geral, seu uso se dá em casos específicos como de insônia grave e quando a higiene do sono, isto é, uma mudança de hábitos relacionados à hora de dormir, não surte efeitos significativos.

Ele cita alguns agravantes da rotina que podem levar à insônia: “Falta de exercício físico regular, falta de horários regulares para se alimentar, para terminar o trabalho, falta de rotina à noite e na hora de dormir”. E complementa: “A pessoa tem que ter um equilíbrio. Tem que sair, ver outras pessoas que não sejam só na telinha e fazer exercício que se exponha à luz”.

Sobre Nícolas Dalmolim 4 Artigos
Estudante de Jornalismo na ECA-USP. Diretor de política, economia e sociedade na Jornalismo Júnior. Repórter da AUN no primeiro semestre de 2024.

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