82,6% das escovas de dente comercializadas em SP são inadequadas, aponta estudo da FSP

Pesquisa reuniu 345 tipos de escovas diferentes para avaliar a regulamentação, a produção e a fiscalização dos acessórios de higiene bucal no estado

A maioria das escovas de dente disponíveis no mercado são isentas de registro na vigilância sanitária. [Foto: Freepik]

No Brasil, mais de 90% das pessoas escovam os dentes apenas duas vezes por dia, enquanto quase 50% não fazem o uso de escova, pasta e fio dental, segundo o IBGE — os dados se referem ao período entre 2013 e 2019. Como se esses números não fossem alarmantes por si sós, um estudo recente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) indica que o problema vai além: mesmo para aqueles que fazem a higienização bucal corretamente, a chance de a ferramenta utilizada (no caso, a escova) não estar de acordo com os padrões recomendados é alta. 

A origem do estudo

Sônia Regina Cardim de Cerqueira Pestana é odontóloga de formação, especializada em Odontologia Social. Para o Doutorado na FSP, Sônia acatou a sugestão do professor, que viria a ser seu orientador, Paulo Capel Narvai, de falar sobre escovas de dentes, tipos, especificações e qualidades. A ideia era fugir ao questionamento clássico feito aos dentistas sobre “qual seria a escova ideal”, o que é variável, e fazer uma abordagem mais detalhada.

Com isso, a pesquisadora percorreu 26 municípios do estado de São Paulo, 24 dos quais foram selecionados via sorteio. Como a ideia era abranger municípios de pequeno e de grande porte, completou-se a lista com a adição de Borá (município menos populoso do estado, com cerca de 800 habitantes) e de São Paulo (município mais populoso do estado, com cerca de 12 milhões de habitantes), pois ambas as cidades não haviam sido contempladas no sorteio. 

Em conversa à AUN, Sônia conta como fez para selecionar as escovas de dentes em suas viagens: “Eu ia para bairros mais simples e para as regiões centrais, desde um shopping grande, até um comércio pequeno. E em todo tipo de comércio em que eu entrava e achava interessante, adquiria uma escova de dentes”. Ela completa dizendo que foram mais de 500 escovas compradas e que, após um filtro, sobraram 345 modelos de 70 marcas diferentes para análise. 

Uma situação ainda pior do que o esperado

A doutoranda admite que já esperava por resultados negativos, mas que a porcentagem predominante de 82,6% (equivalente a 285 escovas) dos produtos como inadequados para uso foi mais alta do que o previsto no início da pesquisa. “Primeiro, fui para o aspecto macroscópico e quando cheguei no microscópico, imaginei que tivesse uma quantidade razoável de escovas inadequadas, mas não imaginei que fosse tanto. Isso foi bem impactante para nós”. 

Uma das razões apontadas por Sônia para que seu trabalho de cinco anos tivesse esse resultado se refere à fragilidade da regulamentação e, por consequência, da fiscalização. Isso se deve, em grande parte, à escassez de produções científicas recentes sobre o assunto. “Nós temos poucos trabalhos científicos publicados. O que ainda hoje é utilizado como referência é o de Charles [C.] Bass, de 1948. Até hoje nós consideramos que as características que ele idealizou são as melhores”.

No que diz respeito às regras da Vigilância Sanitária, o Brasil teve, até hoje, três normas diferentes. A primeira, de 1996, traz, segundo a pesquisadora, “o conceito de cada parte do instrumento de cada parte da escova de dente”. Nas duas versões posteriores, porém, que datam de 2017 e de 2022, nem mesmo essa descrição está presente. 

É importante ressaltar que o problema central encontrado nas escovas analisadas pela pesquisa está nas cerdas. As cerdas, que devem ser polidas, apareceram, muitas vezes, afiadas — o que pode machucar. Além disso, o número de cerdas também era inferior ao mínimo recomendado na maior parte das vezes, mesmo quando a quantidade de tufos era adequada. 

Vigilância frágil

O retrocesso em relação ao que já era desatualizado aparece, também, no que se admite em termos de erro. Sônia relata que as normas sanitárias aceitam que os fabricantes produzam escovas de dentes com até 20% de erro. “E nós consideramos que 20% é muito. Estamos falando de um produto que vai causar ferimento na gengiva”.

A cirurgiã-dentista expande seu raciocínio explicando o “efeito-dominó” que ocorre até que uma escova inadequada chegue ao consumidor: “A indústria se baseia na norma, mas aqui a norma é frágil e a fiscalização é frágil, então a indústria faz o que ela achar melhor. Ela lembra que muitas embalagens de escovas de dente vêm com os dizeres “produto isento da Vigilância Sanitária”, o que faz com que o único registro necessário seja o da fabricação em si. 

“A [das pessoas] maioria nem tem as informações que deveria ter, então a responsabilidade é tanto da indústria, como dos órgãos de vigilância”

Autora do primeiro trabalho sobre escova de dentes com enfoque no papel da vigilância sanitária a nível nacional, Sônia espera que os órgãos de vigilância estejam mais atentos para aperfeiçoar a norma vigente, pois, segundo ela, é inviável crer que o consumidor comum vá à justiça exigir seus direitos cada vez que consumir um produto inadequado. 

A questão social: os impactos e a influência socioeconômica sobre os produtos 

Indagada pela reportagem a respeito de uma eventual correlação entre o nível socioeconômico dos lugares que visitou e a qualidade dos produtos, Sônia descarta a teoria e lembra que, nas pesquisas, foi utilizado o Teste do qui-quadrado de Pearson (“teste de hipóteses para encontrar um valor da dispersão para duas variáveis categóricas nominais e avaliar a associação existente entre variáveis qualitativas”, segundo a UFPR) para a análise estatística desses fatores. “Seja município pior, seja município melhor socioeconomicamente, isso não influenciou no resultado”. 

Ela completa e diz que pretende fazer uma pesquisa no futuro para comprovar que não existe relação direta entre preço e qualidade desses materiais. Vale ressaltar que existe uma correlação entre a prevalência da cárie dentária com piores indicadores educacionais e de pobreza.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*