Por Gabriele Mello, Laisa Dias, Mariana Rossi, Nathalie Rodrigues e Sofia Lanza
Se em junho as festas juninas são unânimes em todo o Brasil, outra presença garantida são os pratos feitos a base de milho: pipoca, assado, pamonha, curau e canjica. Elemento da cultura e da gastronomia do país, além de grande exportador mundial do grão, a história dos brasileiros com o milho data muito antes da chegada dos colonizadores portugueses e da celebração de Santo Antônio, São João e São Pedro.
“Existe essa ideia de que o milho é uma cultura predominante da América Hispânica, da Mesoamérica, mas, na verdade, ele também tinha uma importância fundamental na cultura alimentar ancestral brasileira”, explica Rafaela Basso, historiadora da alimentação e pesquisadora de pós doutorado no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP).
Originado nas Américas, na região do México, há indícios que o milho (Zea mays) tenha sido domesticado pela humanidade há cerca de 7,3 mil anos. Por lá, especialmente entre os maias, o grão era reverenciado e fazia parte de rituais sagrados, como revelam objetos arqueológicos.
Na região centro-sul do continente, sua presença já é marcante há mais de 5 mil anos. “Embora, ao longo do tempo, foi se construindo uma ideia da preponderância da mandioca na alimentação como algo específico do Brasil, temos o milho também muito presente no nosso passado”, ressalta Rafaela.
Por aqui, o grão era adequado para o modo de vida da população originária, em que grande parte dos grupos ocupavam o território de forma semi nômade. Diferente da mandioca, que tem ciclos de produção mais extensos e demandam certa estabilidade nos lugares, o milho é uma cultura rotativa com ciclo vegetativo de três meses, o que permite maior mobilidade e adaptação ao calendário ritualístico de diferentes povos.
“Os rituais que são descritos pelos primeiros viajantes que estiveram no Brasil descrevem como esse calendário ritualístico dos indígenas estava intrinsecamente relacionado com o calendário de produção do milho”, explica a pesquisadora. “A época que eles saíam para caça e que eles voltavam era quando o milho já estava florescendo, para eles poderem fazer a sua bebida ritualística”.
Importante para a formação alimentar, cultural e identitária do Brasil, representando sacralidade e resistência para os povos originários e, posteriormente, para os afrodescendentes, seus significados foram apagados da historiografia oficial e substituídos pelos valores atribuídos no processo de colonização.
Histórico de consumo
Desde o cultivo e domesticação de espécies realizados pelos povos originários, a expansão do milho pelo território brasileiro não se deu de maneira uniforme, podendo variar de acordo com período e local estudado. Na região de São Paulo, entretanto, o alimento foi essencial para a ocupação dos sertões pelos colonizadores.
Durante suas buscas por pedras preciosas ou mão de obra indígena escravizada, o milho acompanhou os bandeirantes que adentravam o território, pois seu cultivo era rápido, com alto grau de produtividade, além de ser um produto facilmente transportável. A farinha de milho, por exemplo, teve um papel essencial no período de mobilidade, pois era fabricada em grande quantidade e tinha alta durabilidade.
Assim a região interiorana tinha um papel essencial para a manutenção das colônias no Brasil: focando na agricultura de subsistência, fornecia alimento para as vilas locais e também para o litoral, cuja produção era voltada para a agroexportação. “O mesmo milho que permitiam as expedições era o que alimentava as populações, então ele tinha um papel central no cotidiano daquela sociedade”, afirma Rafaela.
Entretanto, o cereal não era valorizado pelas elites coloniais: “Ainda que o milho se adaptasse muito bem aos modos de vida rústicos, para esses mesmos homens ele era um alimento que, culturalmente, não trazia uma distinção social”. Essa ideia ainda foi reforçada quando, devido a períodos de crise na Europa, o milho foi utilizado para solucionar a fome da população. Assim, contribuiu-se para uma ideia de alimento marginal, associando-o a períodos de pobreza.
Atualmente, porém, o milho adquiriu significados para além de um alimento de sobrevivência, atuando fortemente na economia nacional.
Do milho ao milhão: aspectos econômicos
Como o terceiro maior exportador de grãos do mundo atualmente, o Brasil se destaca pela grande produção de soja e milho. Apesar da relação entre produção e exportação serem bem próximas, é importante destacar que nem sempre são proporcionais, uma vez que o grão pode ser destinado a diferentes finalidades, como alimentação animal, consumo humano, produção de etanol, além da exportação.
Prestes a se tornar o maior exportador de milho do mundo e ultrapassar os índices dos Estados Unidos, o Brasil não é esse gigante exportador por acaso. Enilson Nogueira, consultor de mercado da Céleres, explica que esse cenário já era almejado há muito tempo, pelo menos, desde o início dos anos 2000. Segundo ele, esse caminho se firmou a partir da introdução da safra de inverno pelos produtores, “a partir do momento que o produtor rural planta uma safra de inverno que vem logo após a soja, isso faz com que ele otimize o uso de terra, de maquinário, de equipe e faz com que esse milho produzido fique mais barato para o mercado internacional”.
Muito mais que um produto barato para o mercado, o milho é um grão versátil. Enilson fala também do uso na produção de etanol, tema de sua dissertação de mestrado na Esalq, o que chama de “segunda maior alavanca” para a produção brasileira, depois da exportação. A indústria de etanol de milho já corresponde a 13% do total produzido no país, e o consultor da Céleres explica que a vantagem dessa produção é a menor pegada de carbono do biocombustível, se tornando um produto favorável aos objetivos da RenovaBio, iniciativa do Ministério de Minas e Energia.
A produção de milho não envolve somente aspectos econômicos, como também políticos. O Governo Federal já interferiu na produção para alavancar ainda mais a oferta do grão, estimulando o plantio. O que seria uma resposta à alta demanda mundial por alimentos em 2022 e uma tentativa de recuperação após a desvalorização do Real.
Alimento versátil
O milho é um alimento versátil, seja em sua forma natural, em seus derivados ou nas preparações em que ele se transforma. Seja no cuscuz paulista ou no nordestino, o milho está presente.
Milho cozido, milho assado, cuscuz, bolo, broa, pamonha, pipoca. Essas são apenas algumas das preparações que encontramos, principalmente, nas festas juninas. Apesar de a base alimentar do Brasil ser o arroz e feijão, o milho tem um lugar especial para os brasileiros.
Já no restante da América Latina, o milho é ainda mais importante. A professora associada do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP, Betzabeth Slater, explica que “[Os países na América Latina] influenciam uns aos outros. [Na] culinária temos algumas coisas muito parecidas e, especificamente com o milho, acho que dá para fazer algumas comparações”, como cita a semelhança entre tamales e a pamonha.
Betzabeth, que é peruana, ainda lembra que há uma grande variedade de milhos. “Temos de todas as cores, desde o amarelinho, que vocês conhecem, o roxo, os meio alaranjados e rosados. E cada uma dessas [variedades] têm as suas diferentes formas de consumo”.
A versatilidade do milho, explica a professora, vem de sua composição nutricional. Rico em carboidratos, o milho tem um sabor muito característico em comparação a outros cereais, devido ao desenvolvimento de anéis de carbono em sua estrutura química durante o aquecimento.
Vídeo de Pipoca com caramelo do perfil do Instagram @jaboticabafsp
No entanto, atualmente, o milho é uma commodity. “Ele entra na bolsa de valores e os preços flutuam de acordo com as negociações comerciais que o mundo quer, e gira em torno de um capital”, detalha Betzabeth, que também lembra a importância de tratarmos um alimento como um bem comum, “nas outras dimensões que [o milho] traz. É o direito de consumir um alimento de boa origem, adequado e sustentável.”
Tratamento de doença rara
Além do sabor e da cultura alimentar que envolve o milho, na nutrição, ele também pode acompanhar o tratamento de doenças através de seus derivados, como é o caso do amido de milho na glicogenose, uma doença rara que afeta a regulação do metabolismo da glicose.
Letícia Andréa, conhecida como rainha da “maisena” em redes sociais, vive com a glicogenose. “Descobri aos 2 anos, com alterações bem visíveis do abdômen, devido ao tamanho do fígado, com icterícia, urina escura, e convulsões. [Com] todos esses sintomas e várias biópsias de fígado, o diagnóstico de glicogenose tipo 9C veio”, conta Letícia. A glicogenose do tipo 9 é causada pela deficiência na enzima fosforilase quinase, responsável pela degradação dos estoques de glicose armazenados no fígado.
O amido de milho é importante no tratamento da glicogenose por auxiliar no controle dos quadros de hipoglicemia, característicos da doença devido à deficiência na liberação do glicogênio, o estoque de glicose no fígado. Além disso, em comparação com outras opções para quem trata a glicogenose, o amido de milho é a mais acessível.
Letícia ressalta que hoje em dia, com acompanhamento médico e ingestão do amido de milho, ela tem uma vida normal. “A alimentação é bem restrita, mas me adaptei bem com isso. É uma coisa que tenho que fazer, e tenho certeza que se for para ter uma qualidade de vida melhor, eu vou me sair muito bem”.
O milho na cultura junina brasileira
A Festa Junina tem fortes traços religiosos e homenageia São João, conhecido como o santo mais próximo de Cristo. João é padrinho de Jesus e para os católicos, é o santo precursor.
Durante a celebração, fortemente desenvolvida no Nordeste do Brasil, a música, danças, decoração, comidas e bebidas são muito presentes. Entre as comidas típicas do São João estão a canjica, milho cozido e assado, bolo de milho ou fubá, pipoca e o curau. Todos esses alimentos carregam algo em comum: são feitos a partir do milho.
No Brasil, assim como ressaltou Rafaela, o consumo do milho vem dos ancestrais nativos. Quando os portugueses chegaram à América do Sul, tinham a tradição de celebrar a colheita do trigo no mês de junho e queriam fazer o mesmo em solo brasileiro, porém, o alimento não era acessível para todos: “As produções locais de farinha de trigo eram voltadas apenas para as elites coloniais, para quem tinha condição de comprar essa pequena produção, ou importar diretamente do reino”, relata a doutoranda. Por outro lado, o milho era uma opção vantajosa para a celebração, mesmo que os europeus tentassem evitar o aproveitamento: “O consumo da alimentação, de modo geral, vai variar de acordo com os grupos sociais. No caso das elites coloniais, elas evitavam, quando podiam, o consumo do milho, pois estava muito associado a uma identidade indígena”.
O uso do milho nessas celebrações se tornou inevitável, principalmente por conta das exigências do mercado. Dessa forma, o consumo do milho como é conhecido hoje durante as festas juninas pode ter uma explicação: além da variedade de alimentos que podem ser produzidos, da facilidade de plantio e colheita, o milho ainda possui sua época de plantio em junho, mesma data em que comumente são realizadas as celebrações do São João no Brasil.
A importância do milho para os brasileiros, portanto, passa de apenas uma questão de exportação ou economia, como também é saúde, cultura, identidade e uma forma de representar diferentes povos e pessoas.
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