Com a realidade do distanciamento social, sobretudo durante os anos de 2020 e 2021, o papel dos trabalhadores de aplicativos ganhou um grande destaque. A relevância se dá pelo fato de que a partir da atuação dessa classe rotineiramente exposta a mais um risco – o da contaminação pelo coronavírus –, outros setores sociais puderam optar por não sair de suas casas para comprar alimentos e não utilizar transporte público nos momentos mais intensos da pandemia.
Os trabalhadores de aplicativos surgem como uma nova classe em meio à uberização, definida por Caetano Patta Barros como “fenômeno de transformação das formas de trabalho no século 21”. Caetano é doutor em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).
A tese de doutorado do pesquisador busca compreender as rotinas e políticas de organização das classes trabalhadoras em meio a uma conjuntura de crise no país, que tem se agravado nos últimos anos. As principais ideias da pesquisa de Caetano estão sintetizadas no vídeo que produziu e está divulgado nos canais oficiais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da USP, após receber menção honrosa na categoria Ciências Humanas da 2ª Edição do “Prêmio Vídeo Pós-Graduação USP” realizado em 2020 em parceria com a TV Cultura.
Apesar da grande relevância dessa categoria na contemporaneidade, a rotina dos trabalhadores é marcada não só pelo risco de contaminação por Covid-19, mas também por extensas jornadas de trabalho, ausência de garantias trabalhistas e baixa remuneração. Segundo levantamento produzido pelo Núcleo de Estudos Conjunturais da Universidade Federal da Bahia (NEC) sobre a categoria dos entregadores, aqueles que têm como única ocupação a atuação nos aplicativos tinham uma jornada de 64,5 horas por semana. Além disso, 72,1% dos entrevistados que já se acidentaram durante entregas criticaram a falta de apoio da empresa ou foram bloqueados após o infortúnio e 85% afirmaram ganhar menos de 2 salários mínimos mensalmente.
Barros pontua que algo que foi recorrente nos anos de pesquisas era o uso da palavra “escravidão” para os trabalhadores se referirem à atividade que exerciam e à relação que estabeleciam com as plataformas. “É uma construção discursiva que permite enxergar traços estruturais de como o trabalho se instituiu no Brasil e como se manifesta nessas formas ultramodernas de reorganização do trabalho, do consumo e do acesso a serviços na cidade”, afirma o pesquisador.
A realidade vivenciada por essas pessoas é mais uma das facetas da flexibilização do trabalho colocada em prática no Brasil atual. Esse processo, porém, não se iniciou na pandemia e passou a acontecer de maneira mais evidente, principalmente, após a reforma trabalhista. Nesse sentido, “a pandemia, na dimensão sanitária, mudou a dinâmica de trabalho e de viver a cidade; e, na dimensão econômica, precarizou ainda mais os trabalhadores, aumentou muito o número destes no mercado e isso permitiu com que as plataformas rebaixassem seus repasses, inviabilizando a atividade para alguns”, diz Caetano.
Conflitos e reações
O discurso que fortalece as grandes empresas e plataformas nas quais se prestam os serviços é o da possibilidade de autogestão e de ascensão econômica a partir da menor regulação desse regime de trabalho. Porém, a condição de exploração e a desconfiança sobre as plataformas devido à prática arbitrária de bloqueios e banimentos de entregadores e motoristas relativizam esse discurso e impulsionam a organização, inclusive, política para garantir melhores condições de trabalho. A organização dos dois grandes Breques dos Apps em 2020 e 2021 foram expoentes desse processo de mobilização, que continua ativo ainda hoje como se evidencia pela realização do Apagão dos Apps no início de abril deste ano.
Para além das ruas, o ambiente digital, seja via Youtube ou grupos de WhatsApp, é um espaço de grande articulação dessas categorias, que a partir de uma realidade comum buscam construir redes de apoio e compartilhar problemas e soluções que encontram. O pesquisador pontua: “Na contramão desse individualismo que prevalece no dia a dia do trabalho, existe esse ecossistema de construção coletiva, que é também, mas não só, político”.
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