Poder público permitiu remoção de 2 mil famílias em São Paulo durante a pandemia

Apesar de crise do coronavírus, a defesa da propriedade privada continua ditando a atuação do poder público paulista

Foto: Reprodução/TV Globo

Por Adriana Teixeira, Amanda Mazzei, Bruna Irala, Mayara Prado, Pedro Lobo e Pedro de Sousa

Entre abril e dezembro de 2020, ao menos 2 mil famílias foram removidas de ocupações de moradia na Região Metropolitana de São Paulo, segundo mapeamento do Observatório de Remoções. Na maior crise sanitária do último século, é revelado, mais uma vez, que o direito à saúde e o direito à moradia são reivindicações escanteadas quando a defesa da propriedade privada e os interesses de mercado são a ordem do jogo.

Mesmo as remoções representando a perda do bem-estar e da seguridade de vida dessas famílias diante de uma calamidade de tamanha proporção, não houve grandes medidas do poder público brasileiro que as impedissem de acontecer, como aponta a mestranda em Geografia pela USP, Thauany Vernacci Brewer.

“Durante a pandemia, não foi aprovada nenhuma lei que instituísse novas modalidades de regulação de relações jurídicas de direito privado. Não houve suspensão de ordens de despejo, remoção e reintegração de posse. Mesmo o trecho de um projeto de lei que previa a suspensão apenas de despejos por falta de pagamento de aluguel foi vetado pelo governo federal”, argumenta Vernacci.

A pesquisadora ainda cita algumas iniciativas que não progrediram, tanto projetos de lei quanto uma medida do Conselho Nacional de Justiça, que orientava juízes a suspender mandados de reintegração de posse. Seu objetivo era evitar aglomeração de pessoas, mas logo no primeiro semestre esses prazos foram restabelecidos e as reintegrações voltaram a acontecer, explica.

Um exemplo de iniciativa que não teve progresso é o Projeto de Lei 146/2020 em São Paulo, que determinaria a suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extra-judiciais durante a pandemia do novo coronavírus. Porém, mesmo com caráter emergencial, sua tramitação se prolonga por mais de 10 meses.

Em âmbito federal, pelo menos 20 projetos de lei com proposta de suspender remoções durante a pandemia tramitam no Congresso, como o PL 1975, apresentado em 16 de abril do ano passado. A ONU apoiou o PL e se posicionou contra os despejos no Brasil.

Vernacci aponta que mesmo essas medidas não seriam suficientes para “impedir que muitas pessoas vivam em condições muito críticas de sobrevivência, privadas do acesso à moradia e continuamente ameaçadas pela violência policial”. No entanto, ver que nem tais “medidas paliativas” foram aplicadas “desfaz qualquer ilusão sobre o papel do Estado e da sua maquinaria jurídica”, avalia a pesquisadora.

Sobre a postura do poder público, Cristhiane Aparecida Falchetti, doutoranda de Sociologia na USP, afirma: “É absolutamente inadequada, pois a moradia está diretamente relacionada às condições sanitárias, de modo que desabrigar pessoas neste momento é elevar ao extremo o nível de vulnerabilidade delas. Na verdade, essas famílias são duplamente negligenciadas: primeiro, por não ter assegurado seu direito legítimo à moradia digna; segundo, por ter violadas suas condições mínimas de vida, sendo expostas ainda mais à crise sanitária.”

Das 1300 famílias despejadas entre abril e junho, ainda de acordo com o Observatório, 900 pertenciam à ocupação Vila Roseira II, no distrito de Guaianases. Nenhum tipo de assistência ou garantia foi oferecida depois do despejo. A decisão judicial foi tomada durante um plantão em caráter de urgência, com autorização do uso da força policial. Como afirma Falchetti, “as famílias não recebem uma alternativa de moradia e acabam ocupando locais ainda mais precários e de risco.”

Depois de décadas em suas casas, diversas famílias veem suas moradias demolidas. “Em troca, a prefeitura ofereceu um auxílio-aluguel de 400 reais, o que só possibilitava alugar um dos barracos na mesma área que, inexplicavelmente, não tinham sido removidos pela mesma ação. Por fim, alguns deles se encontraram numa ocupação organizada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto)”, exemplifica a pesquisadora.

Durante o 2020 pandêmico, o poder executivo paulista, além de não ter construído políticas públicas e ações que protegessem o direito à moradia, atrelado à saúde, foi ele mesmo o autor de ações de reintegração de posse, como no caso da ocupação Viva Jardim Julieta, no distrito de Vila Medeiros, Zona Norte de São Paulo, onde vivem 400 famílias. Por conta de várias mobilizações, a remoção foi suspensa até o fim da pandemia.

Débora Grama Ungaretti, doutoranda da FAU-USP e pesquisadora do LabCidade, diz que estes são conflitos “que não deveriam nem existir, tampouco chegar ao Judiciário”. Ela defende que o poder público não pode ser uma fonte de ameaça à moradia e vida, e sim uma instituição de proteção a esses direitos. “O poder público tinha que ter suspendido as obras públicas, e as subprefeituras não deveriam atuar ameaçando alguém de perder sua casa, não importa o motivo. Estamos num período em que é preciso proteger as pessoas.”

Além disso, por parte do Poder Executivo, existem ainda as chamadas “remoções administrativas”, que ocorrem de maneira desvinculada de um devido processo legal. De acordo com o Observatório de Remoções, são processos “ainda mais silenciosos, invisíveis e muitas vezes ainda mais violentos, já que sequer existe espaço para a defesa e o contraditório”.

No dia 6 de março, a prefeitura de Guarulhos realizou a remoção administrativa da ocupação Brinco de Princesa, fazendo uso de trator para destruir as casas e o muro que as cercava. A justificativa foi que a área pública estava destinada para a construção de uma nova UBS (Unidade Básica de Saúde) para a cidade. Mais de 10 meses após a desapropriação, nenhuma UBS foi construída no local.

Ao explorar os padrões e motivos que norteiam as remoções, Falchetti aponta que os casos mais recorrentes são de ocupações que “estão na trilha dos processos de valorização imobiliária”. Além disso, a pesquisadora também relata a dificuldade de identificar “princípios de bem-estar comum e interesse público” como motivadores dessas ações do Estado, enfatizando que “o cenário comum das remoções são pessoas sendo retiradas de suas casas, muitas vezes de forma violenta, deixando para trás seus pertences e sem ter pela frente nenhuma alternativa de moradia”.

Ungaretti explica que o direito à moradia, apesar de constitucional (Art. 6º), esbarra em muitas barreiras para sua aplicação de fato. “O Judiciário é muito conservador no Brasil. Em conflitos que colocam o direito à moradia contra um título de propriedade, esse Judiciário privilegia o título de propriedade, como se fosse ainda absoluto.”

Ela afirma que o título precisaria ser relativizado e outros elementos considerados, como o pagamento do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e o uso do imóvel, o que poderia gerar uma posição favorável aos ocupantes. “Em um caso de imóvel em situação de abandono que foi ocupado, o título de propriedade não deveria ser suficiente para comprovar a posse, porque ela não estava sendo exercida de fato.”

Isso porque o Artigo 5º da Constituição de 1988 determina que o direito à propriedade privada é legítimo somente quando exerce sua função social, ou seja, quando um terreno ou espaço é, comprovadamente, utilizado por seu proprietário. A partir disso, é assentido ao Estado a intervenção em terrenos e propriedades privadas que não cumpram tal determinação, visando, dessa forma, garantir a aplicação de itens constitucionais.

Assim, o predomínio do princípio da propriedade privada sobre a moradia fragiliza o direito à moradia e gera um tipo de cidade em que os processos de valorização financeira se impõem sobre o bem-estar da população. Como afirma Falchetti, “podemos dizer que as ocupações irregulares, que responderam pelo processo de urbanização periférica favorecendo a industrialização, deixaram de ser toleradas a partir do momento em que perdem essa funcionalidade, o processo de acumulação avança sobre a produção do espaço urbano, e a habitação popular se torna uma frente de expansão do mercado.”

A resposta do Governo Federal em relação à proposta de suspensão dos despejos durante a pandemia no Artigo 9º da Lei Nº 14.010 exemplifica o que, na prática, é defendido em primeiro lugar. O executivo alega que “a propositura legislativa, ao vedar a concessão de liminar nas ações de despejo, contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de aluguéis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio.”

No entanto, o conceito de direito deve se antepor aos de mercado e propriedade privada, como defende Vernacci, chamando a atenção para a “necessidade do acesso à moradia não estar cativo da dinâmica de preços do mercado”.

“Precisamos lembrar que estamos falando da manutenção de uma lógica proprietarista num mundo onde o trabalho é supérfluo, ou, em outros termos, onde as condições de remuneração estão cada vez mais precárias. O número de pessoas e famílias com remuneração baixa e instável e sem acesso a um imóvel próprio sempre foi grande, e só cresce.”

Tais pessoas “vivem em barracos, em quartos de pensão, em cortiços, em ocupações, e não têm tido condições de manter o isolamento social. São, consequentemente, as mais afetadas pelo coronavírus, dividindo cômodos com outras pessoas e muitas vezes sem acesso à saneamento. Com o prosseguimento dos despejos e remoções, muita gente é submetida a uma itinerância contínua.”

Com mais de dez meses de pandemia, e vacinação ainda em passos iniciais, a política pública paulista segue expondo uma população vulnerável às consequências da falta de moradia, agravadas pela crise sanitária, sem previsão de término. Remoções seguem firmes, assim como a covid-19, que só escancara um problema já conhecido e sofrido.

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