No dia 25 de março os estudantes de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP receberam Sithembile Mbete, professora de relações internacionais e política sul africana na Universidade de Pretória, para um seminário virtual. O encontro teve por objetivo discutir a conjuntura política durante a pandemia partindo de um olhar interno e familiarizado para entender os atuais desafios políticos do continente.
A crise sanitária gerada pela COVID-19 impôs grandes desafios às mais diversas nações ao redor do globo. Nos 54 países do Continente Africano, onde a pandemia chegou em fevereiro de 2020, mais de 171.480 mortes pelo vírus foram registradas até o dia 2 de agosto de 2021. De acordo com Mbete as dificuldades enfrentadas pelos sistemas de saúde africanos podem ter raízes muito profundas.
“Houve muita discussão entre estudiosos e formuladores de políticas sobre como as deficiências nos sistemas de saúde africanos em todo o continente eram, muitas vezes, um resultado direto dos programas de ajuste estrutural do Banco Mundial e do FMI na década de 1980 e 1990” informa Mbete na palestra ministrada aos alunos do IRI/USP. Com o intenso corte de gastos e investimentos em um período em que muitos países acabavam de alcançar a liberdade da colonização européia, setores importantes como a Saúde e Educação foram severamente prejudicados.
Mesmo diante de problemas estruturais graves, o continente apresenta as menores taxas de contaminação de todo o mundo. A ausência dos equipamentos usados em outros lugares, como nos países europeus, obrigou os profissionais de saúde africanos a usarem tratamentos alternativos para tratar pacientes com quadros severos de COVID-19, alguns deles se provaram surpreendentemente eficientes. “Muitos métodos de tratamento a pacientes que vieram da África do Sul, Senegal, Gana, Nigéria, Quênia, influenciaram a maneira como o tratamento à COVID-19 foi conduzido no restante do mundo”, afirma Mbete.
Com uma diversidade de culturas, realidades socioeconômicas e históricas, geralmente negligenciadas nas narrativas que se constroem a respeito do continente, não há uma única perspectiva da crise da COVID-19. “A África é um continente tão diverso de 54 países — 55 se você contar a República Sahrawi do Saara Ocidental — e 1,3 bilhão de pessoas. E inúmeras línguas, milhares de línguas, grupos étnicos, religiões e histórias de colonização. Então, é impossível falar de uma única África “, comenta a professora.
Mesmo com tantos contextos sociais diversos, a professora enxerga uma tendência dos países africanos a estruturar suas políticas externas de modo a assumir posições coletivas no cenário internacional. Durante a crise sanitária gerada pela COVID-19, esse histórico de atuação teve um impacto especialmente positivo.
Em muitas comunidades africanas, esse comportamento solidário e pensando na coletividade é uma parte importante do próprio tecido social. Para explicar, Mbete relembra o conceito de Ubuntu, termo presente nos idiomas pertencentes ao grupo linguístico bantu “Em uma língua bantu a ideia de Ubuntu é ‘Eu existo porque existimos…eu existo através de você. É uma visão coletiva, uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas. É o oposto da noção cartesiana de ‘Penso logo existo’ que é uma visão individual”.
A professora destaca a importância da atuação da União Africana no enfrentamento da COVID-19: “o engajamento da União Africana com as demais organizações internacionais realmente assumiu uma postura de solidariedade e coletividade”. Postura essa que não foi vista com frequência nos outros continentes, nos quais ações nacionalistas foram maioria.
O Centro Africano para Controle de Doenças (Africa CDC, em inglês) foi essencial na coordenação da resposta do continente à disseminação do vírus. Por meio da experiência adquirida ao lidar com outras epidemias infecciosas, como a que a África Ocidental vivenciou na década passada com o vírus do Ebola, os especialistas de diferentes países foram capazes de trocar experiências e pensar nas melhores formas de conter as infecções e tratar a doença. “Vimos o Centro Africano para Controle de Doenças se envolver nas configurações da agenda pública. Compartilhando informações, realizando campanhas de conscientização através das redes sociais e podcasts. Informando os cidadãos sobre prevenção e tratamento a COVID-19”, relembra Sithembile.
“A ironia da COVID-19 é que resultou em algumas respostas e inovações políticas que acabaram mitigando alguns dos piores efeitos da doença”, afirma Mbete.
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