No final do século XIX e início do XX, capoeira era uma prática considerada um crime previsto por lei, porém, atualmente é considerada um patrimônio cultural. Para ir desse status marginalizado até a posição de valorização nacional e internacional, foram necessárias grandes mudanças na percepção da sociedade sobre a prática. O graduando do curso de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Pedro Gabriel de Aquino, pesquisa parte desse processo.
Em seu artigo para a revista Epígrafe, publicação do Departamento de História da FFLCH, “O papel dos cronistas brasileiros na transformação da imagem da capoeira no início do século XX (1900-1930)”, Pedro aborda as tentativas de transformar a capoeira em esporte no início do século XX, tentando a desvencilhar da imagem negativa que tinha na época. Em sua pesquisa de Iniciação Científica, o pesquisador recorre às obras de Manuel Querino, intelectual da mesma época que buscava valorizar a capoeira, juntamente com a cultura afro-brasileira.
Inicialmente, apesar de popular, a capoeira era muito ligada à criminalidade e violência, sendo perseguida e proibida, motivações advindas principalmente pelo racismo sofrido por pessoas negras marginalizadas, que eram as praticantes da capoeira.
Entretanto, por volta de 1910, início da República Brasileira, existe uma tendência ao incentivo e valorizarização esportes nacionais, criando um sentimento nacionalista na população. Nesse contexto, alguns intelectuais começam a se voltar para a capoeira. “É um momento em que o país está construindo uma nova identidade nacional. Nessa discussão, eles olham para a capoeira como uma arte marcial que o Brasil tem que valorizar”, explica o graduando.
Capoeira como esporte e o racismo intrínseco
Em busca desse sentimento nacionalista, iniciam-se os argumentos a favor de tornar a capoeira um esporte nacional, o que trazia certa valorização para a prática. Apesar disso, segundo Pedro, essas propostas de esportivização muitas vezes incluíam a necessidade de retirar certos elementos tradicionais, como a música e os cantos, “descaracterizando o que a capoeira era, para ficar apenas com os movimentos e ensiná-los como uma prática esportiva”, ele afirma.
Essa descaracterização se relaciona com o racismo presente na época, pois havia uma inclinação a ignorar ou negar os aspectos afro-brasileiros dentro da capoeira, muito presentes, por exemplo, na musicalidade. Assim, buscava-se valorizar a capoeira, mas não a sua origem e heranças negras, que continuariam sendo colocadas à margem da sociedade.
Entretanto, havia um autor, chamado Manuel Querino, que trazia uma perspectiva diferente sobre este cenário. Ele era um intelectual negro, que teve relevância no processo da valorização da capoeira, como existe hoje. Diferentemente de outros autores, ele buscava exaltar as heranças e os aspectos da cultura afro-brasileira dentro da prática, além de exaltar e valorizar as contribuições de pessoas negras para a sociedade em geral. Assim, Querino defendia a capoeira sempre atrelada a uma prática cultural afro-brasileira, desaprovando sua descaracterização.
Em um período que o racismo científico tinha força e tentava defender uma inferioridade “cientificamente comprovada” dos negros, Querino traz percepções e ideias que mostravam o contrário. “Ele subverte essa lógica, colocando que o negro é tão capaz, ou até mais, quanto às demais ‘raças’ consideradas superiores”, ressalta Pedro.
E apesar de toda discussão, as ideias de tornar a capoeira um esporte nacional não estabeleceram projetos concretos na época, mantendo-se apenas no discurso. Ainda assim, as iniciativas foram importantes para começar a pensar a prática como algo não criminoso, tornando-a mais aceita, principalmente pelas elites.
Reflexos na atualidade
O graduando Pedro Gabriel afirma que ainda hoje “existe uma discussão nos grupos de capoeira, se ela é um esporte, uma luta, uma dança ou uma arte”, mostrando uma divergência de visões sobre como caracterizá-la. Há pessoas que praticam a capoeira como atividade física, mas existem outras que a veem como uma filosofia de vida, uma arte, e rejeitam a visão esportiva. O estudante diz que “existe uma certa aversão entre mestres de capoeira em entendê-la como esporte, talvez porque quando se tentou fazer da capoeira um esporte, foi descaracterizando ela”.
Apesar disso, a tentativa de esportivização ajudou a excluir a capoeira de sua posição marginalizada, um dos primeiros passos para que ela chegasse ao patamar atual, sendo valorizada tanto na cultura nacional, quanto em âmbito internacional, ao mesmo tempo em que mantém e exalta suas características afro-brasileiras.
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