Por Bianca Muniz, Renan Sousa, Tainah Ramos e Yasmin Oliveira
A cidade de São Paulo é uma região cosmopolita. No vai e vem de seus carros, avenidas e viadutos, pouco podemos ver de uma cidade em constante movimento. Há cinquenta anos, já era uma grande metrópole. Há cem, tomada por barões do café. Há cento e cinquenta, uma pequena cidade, com fazendas, plantações e escravos.
A cidade não deixa transparecer seus 465 anos, até porque há poucos monumentos que lembram do que ela era. A todo o momento, o progresso chega com uma nova construção, um novo prédio, um novo projeto urbanístico e arrasa com o passado.
Por meio de três bairros tradicionais da cidade, Bixiga, Liberdade e Bom Retiro, é possível desvendar seus mistérios e histórias escondidas. A partir de seus personagens e relatos, procuram-se os fragmentos de uma cidade que não para, não dorme e se ressignifica a cada momento.
Bixiga – conhecido pela Itália, nascido com negros
Próxima à Avenida Paulista, cartão postal da maior cidade do país, uma região contrasta os enormes prédios comerciais com feiras livres e de antiguidades, cantinas de família e a Paróquia Nossa Senhora Achiropita. O bairro do Bixiga, com seu estilo popular e residencial, abriga narrativas escondidas em suas ruas.
A história se inicia com um comerciante português. Onde hoje reconhecemos o território do bairro do Bixiga, na capital paulista, no fim do século 19 tudo era propriedade de um comerciante português, Antonio José Leite Braga. A região era conhecida como “Chácara do Bixiga”.
Após sua morte, a viúva se casa com um comerciante, Fernando Albuquerque. Aqui é o ponto de virada para a história do Bixiga. Em anúncios de jornal, Albuquerque noticiava lotes de terra à venda na região central de São Paulo. Uma área irregular, cheia de ladeiras e córregos, que diminuía os preços dos terrenos. A oferta atraiu a comunidade italiana – na época, imigrantes e descendentes de pouco poder aquisitivo, uma antiga classe média baixa.
O início do século 20 marca os primeiros passos do bairro que até hoje carrega sua fama “italiana” – mas isso é apenas uma parte da história, de acordo com a pesquisadora Sheila Schneck, que dedicou seu mestrado e doutorado ao povoamento do bairro. Região que, ironicamente, virou seu lar apenas depois da entrega de sua tese.
Lotes largos, de cerca de cinco metros de comprimento e 50 metros de largura, permitiram uma nova dinâmica populacional e abrigaram as primeiras construções. Construindo suas casas ou sobrados na fachada dos terrenos, em arquitetura simples, ainda sobrava espaço nos fundos.
Esses arquivos foram registrados por Sheila em uma extensa pesquisa pelos documentos do Arquivo Histórico de São Paulo, no centro. Os registros à disposição revelavam licenças da prefeitura para construção. Todo o território original, que incluía partes da Liberdade e Bela Vista, foi mapeado. Ela também teve acesso às plantas de construção.
Com o tempo, os novos moradores perceberam a possibilidade de renda extra com os metros de largura que sobravam em seus novos terrenos. Os fundos das propriedades deram lugar a novos empreendimentos. “A prática de aluguel era muito comum. Eles construíam suas casas na frente e alugando atrás”, conta Sheila.
Surgiram na época as tradicionais vilas, casas em série nos terrenos largos que lembram prévias de condomínios fechados. Mas também aparecem construções ainda mais simples, por preços baixos, para locação.
E se os italianos não possuíam grandes fortunas, seus inquilinos, menos ainda: a maioria afrodescendentes, recém libertados, começaram a povoar a região pelo aluguel de cortiços nos fundos escondidos dos antigos lotes.
Para descobrir o perfil dos novos moradores, Sheila pesquisou por boletins de ocorrência (BOs). “Muitos ex-escravos estavam espalhados pelo bairro, em fundos e pensões. Quase no mesmo número que os italianos”, conta. Na região da Saracuda, próxima ao Bixiga, ela também localizou grandes casarões com cortiços nos fundos, o que prova que era uma prática comum na época. “Uma grande mistura”, sintetiza a pesquisadora.
O “encortiçamento” da região não é estampado nas bandeiras e histórias orgulhosas dos moradores. Mas esse fluxo, que já estava estabelecido na década de 1910, é parte importante da memória do bairro, que até hoje abriga construções do gênero.
Na origem do bairro, a forte presença negra fez surgir um tipo de empreendedorismo local. Daí surgiram as escolas de samba, como a Vai-Vai, uma forma de fortalecer a cultura de negros, para negros e por negros, como diz o professor Juarez Tadeu de Paula Xavier. “Como um empreendedorismo que nasce da necessidade e não como forma de gerar riqueza, tende ao fracasso mesmo. Daí nascem as escolas, como uma forma de perpetuar a música e cultura negra, vendendo um ritmo, uma ideia.”
Segundo o professor, com o tempo e a ideia de embranquecimento da sociedade brasileira, as escolas de samba passaram a ser uma coisa produzida pela comunidade negra, mas que atendia as necessidades das classes brancas. Assim, foi perdendo o caráter comunitário e ganhando uma face mercadológica, reduzindo suas raízes negras.
A proximidade com a residencial Avenida Paulista tornou o Bixiga, de caráter misto e próximo a uma linha de bonde, um grande abastecedor de alimentos para os casarões da área nobre da cidade. Até hoje, a economia do bairro é movimentada por pequenos negócios: mercearias, quitandas, barbearias. Uma das primeiras feiras livres da cidade também foi lá, em 1912, na praça São Domingos.
Com o passar do século 20, os descendentes de italianos debandaram da região. Até 1950, poucos movimentos populacionais relevantes marcaram o bairro, conta. Com o boom da construção civil, na mesma década, nordestinos sairiam de seus estados para a metrópole. E a região do Bixiga, localizada no centro, atraia os novos paulistanos com seus aluguéis nos fundos.
Segundo Sheila, esse movimento continuou e permanece até hoje. Com o tempo, eles sairiam dos fundos para as fachadas, comprando a casa própria. O ápice desse movimento seria 30 anos depois, na década de 1980. Surgia uma nova dinâmica populacional, distante daqueles imigrantes europeus e mais próxima do descendente de brasileiro.
É nessa época, também, que se inicia um processo de tombamento finalizado em 2012, marcado pelo limite de andares. Sem a possibilidade de se construir grandes prédios comerciais, construções antigas se tornaram estacionamentos ou novos cortiços sob a direção de antigos proprietários.
As pensões do centro, pouco mais caras que os aluguéis na periferia, continuam atraindo quem emigra para São Paulo. Menos como doutoranda e mais como moradora do Bixiga, Sheila percebe um novo movimento de africanos, que ocupam cada vez mais a região. De italiano, sobrou pouco.
Liberdade – de quilombo ao pequeno Japão
O bairro, tradicionalmente conhecido por abrigar a comunidade japonesa que veio para São Paulo, guarda uma história um pouco mais antiga e diferente. Localizado próximo ao centro velho de São Paulo, a Liberdade recebe esse nome por ser uma antiga comunidade de negros alforriados.
Falar com as pessoas do bairro é uma tarefa difícil, por serem bem reservadas, e por algumas não falarem português. Nas bancas de jornais, títulos em português e japonês se mesclam. Nas lojas, que se acumulam ao longo das ruas, uma variedade de panelas, facas, objetos que remetem à cultura. Não podemos fotografá-los, os donos costumam ficar irritados.
A rua é movimentada e tudo ali faz lembrar: aquela comunidade está ali para fortalecer ela mesma, com seus signos e significados.
Bom Retiro – de judeus a coreanos e bolivianos
Descendo a estação da Luz, logo é possível chegar no bairro do Bom Retiro. A região, famosa por abrigar a sede da escola de samba Gaviões da Fiel e por ser pólo da indústria têxtil, armazena uma história marcada por mudanças e continuidade de diferentes populações.
Seu surgimento ocorreu no final do século 19, a partir do loteamento das chácaras que rodeavam as ruas Direita, XV de Novembro e São Bento. Essa medida possibilitou a formação de alguns bairros centrais, como Brás, Barra Funda e o Bom Retiro – este último, originado da chácara de mesmo nome.
A localização próxima à Estrada de Ferro São Paulo Railway facilitou a migração de povos para a região, atraídos pela localização privilegiada e ofertas de emprego. Inicialmente, os cortiços e moradias simples do Bom Retiro abrigavam imigrantes italianos, que trabalhavam como operários nas indústrias que surgiam próximas à ferrovia. Já o comércio, que até hoje se concentra na rua José Paulino, era praticado por portugueses.
Anos mais tarde, outro povo se instalou nas ruas do Bom Retiro. Eram os judeus, que chegavam da Europa, durante a Segunda Guerra Mundial. A perseguição nazista nos países que formavam a antiga União Soviética motivava os judeus a fugirem para o Brasil. No bairro do Bom Retiro, eles encontravam ocupação nas indústrias estabelecidas.
Nos anos da ditadura, é possível ver a forte presença dos judeus, evidenciada pelo livro K, Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, que conta a história do pai de Bernardo em busca de informações sobre a filha, desaparecida na ditadura. Por diversas vezes, são citadas as lojas de tecido no Bom Retiro e a convivência com outras comunidades locais, por exemplo, os portugueses.
O próprio personagem principal, identificado apenas por K, fomenta o convívio daquela comunidade, por meio de um clube que discute literatura e produz um jornal na língua dos judeus da Europa, o iídiche.
Os sul-coreanos que hoje predominam no bairro, chegaram na década de 60, ocupando a Baixada do Glicério. Posteriormente, passaram para outras regiões, como Aclimação, Brás e principalmente o Bom Retiro, onde são a maioria no comércio de roupas e na indústria têxtil, tão característicos da região.
Algumas características podem justificar essa atração de imigrantes para o Bom Retiro. A facilidade em se investir nos pequenos estabelecimentos comerciais da região e o baixo custo da moradia em uma localização central.
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