Por Diego Macedo, Hugo Vaz e Vital Neto
O consenso científico atual é esmagador — aquecimento global é real e acelerado em larga escala pela ação humana. Nosso consumo de plástico é o maior causador da poluição dos oceanos, rios e lagos. Menos da metade da população mundial tem acesso à água potável. A cada ano, países geram 1,3 bilhão de toneladas em resíduos. Recordes de temperatura, perda da biodiversidade, escassez hídrica, poluição, multiplicação de catástrofes meteorológicas. É impossível não estar ciente, em algum nível, das mudanças atravessadas pelo planeta e sua correlação com a atividade humana. Mas longe dos acordos políticos internacionais e das cúpulas diretoras das grandes empresas, resta ao indivíduo se perguntar: vale à pena fazer alguma coisa?
É quase impossível associar pequenas ações cotidianas, como uma visita ao supermercado, a opção por um banho mais rápido, ou a pedalada diária até o trabalho com a sobrevivência da humanidade. O cidadão médio dos países industrializados, entretanto, é o ponto final de inúmeras cadeias produtivas e não pode dissociar-se do fato que suas decisões afetam (até certo ponto) a estabilidade do meio-ambiente, e a subsistência de centenas de milhões de pessoas. Patricia Aguirre, uma das organizadoras do Fala Sampa, projeto que fez parte da Virada Sustentável 2019, exemplifica essa preocupação: “Procuro ser coerente no meu estilo de vida. No meu próprio apartamento, o jeito que decoro, pego coisas em caçambas e reciclo, dou atenção ao reuso da água, reduzo o consumo de plásticos. São várias manobras pensando sempre na preservação do meio ambiente.”
Resta saber, no entanto, quais ações individuais podem realmente impactar o globo. Afinal de contas, usar canudos de papel salvará tartarugas? Deixar de comer carne impedirá o aquecimento global? Fraldas descartáveis assegurarão o futuro das próximas gerações? Quando substitui-se um hábito por outro, ainda há interação com a natureza, utilizam-se seus recursos e rastros são deixados para trás. Algumas escolhas, porém, influenciam diretamente a escala do problema, e para aqueles que se importam, como para aqueles que não, elas têm consequências do tamanho do mundo.
Canudos plásticos
Nos últimos anos, intensificou-se o debate, sobretudo nas redes sociais, sobre a importância de se reduzir o uso de plásticos, sobretudo os canudos plásticos. O objeto, utilizado em praticamente todos os estabelecimentos comerciais que vendem sucos, refrigerantes e outras bebidas, se tornou o protagonista de uma verdadeira cruzada ideológica, que culminou com a proibição de sua comercialização em diversas cidades do país. A primeira delas foi o Rio de Janeiro. De autoria do vereador Jairinho (MDB), a medida previa multa de até R$ 3 mil para os estabelecimentos que descumprirem a determinação.
Em São Paulo, anos antes da proibição algumas pessoas já adotavam práticas cotidianas para a redução do uso dos plásticos, é o caso de Patrícia Aguirre, que afirma se recusar a usar canudos plásticos. Ela explica que adotou a medida anos atrás “porque todos sabemos onde eles vão parar. Vai demorar centenas de anos para se decompor e vai parar nas águas e no mar. Vai afetar o meio ambiente, principalmente os animais”.
No entanto, surgiram debates sobre a real efetividade da medida, visto que há várias outras atividades e objetos que causam a poluição de plásticos. A pesquisadora Silvia Sayuri, do Núcleo de Estudos em Política e Ciência Ambiental na USP, afirma que “os canudos são a ponta do iceberg para a questão dos plásticos. Mas o que costumamos falar é que essa é uma porta de entrada para outras discussões. Como os microplásticos, que ficam dispersos na água e podem acabar sendo ingeridos por animais e por nós mesmos”.
A pesquisadora lembra que na época da campanha contra os canudinhos “saíram reportagens sobre outros temas, como o uso do BPA na fabricação de mamadeiras e chupetas” — que podem causar transtornos hormonais e até o câncer. Por isso, Sayuri afirma que o debate sobre o canudinho levou à outras discussões e que “hoje você vê produtos nas lojas que têm a etiqueta de ‘este produto não usa BPA’”.
Quem também defende a proibição dos canudinhos, mas por outro motivo, é Jorge Tenório, professor da Escola Politécnica da USP. Para ele, “demorou” para que algo fosse feito para a redução da geração desses produtos de ciclo longo.
Ele explica: “Porque a forma que a gente vive é insuportável pois os recursos não são infinitos como as pessoas acham que são, por mais que os humanos desenvolvam tecnologias. Li recentemente uma teoria de [Thomas Robert] Malthus, o qual afirma que os alimentos crescem em progressão aritmética, enquanto a população cresce em progressão geométrica, ou próximo disso. E ele fez essa afirmação há mais de 200 anos. Então não acho que vá faltar tudo no mundo, mas estamos chegando em um limite”.
Mas Sayuri alerta que não basta pensar apenas em evitar o uso, é preciso ter os 3 R’s sempre em mente: “O primeiro passo é reduzir, depois reutilizar e, por fim, reciclar”. Além disso, a pesquisadora destaca que políticas públicas e ações de conscientização e educação devem acompanhar as ações pontuais para formar uma nova mentalidade de consumo nas pessoas.
A história narrada por Patrícia Aguirre corrobora a visão de Sayuri: “Para se ter uma ideia, fizemos o aniversário da minha netinha e não usamos balões de plástico. E essa consciência ela, que tem seis anos, já está tendo. Ela se recusa a usar canudos de plástico, copinhos. Ela vê a mãe, me vê e ela agora é uma defensora. Para fazer a festa compramos copinhos de inox, ao invés de usar os descartáveis de plástico. Isso tem um custo, é um pouco mais caro, mas por outro lado dura por muitos anos. Nada de plástico. Procuramos ser bem coerentes”.
No entanto, há quem acredite que por mais benéfica que seja a redução do uso dos canudos plásticos, existem questões mais significativas que não são tão discutidas. É o caso do pesquisador Ravi Orsini, pesquisador da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH – USP) e mestre em Ciência Ambiental, que afirma existirem controvérsias científicas sobre o tema.
“Existem ações que são relevantes em termos ambientais e que as pessoas não fazem, enquanto existem questões que não são tão relevantes e as pessoas fazem. Por exemplo: a questão da redução do uso dos canudinhos; a ação é válida, mas o quanto é realmente relevante pela proporcionalidade que a questão tem? Enquanto isso, a questão do consumo de carne é pouco discutida e é muito importante, mesmo tendo uma relevância e impacto ambiental gigantesco”.
Animais, alimentos e efeito estufa
Segundo dados do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, divulgado em agosto deste ano, aproximadamente um quinto dos gases responsáveis pelo aquecimento global vêm do desmatamento e da agropecuária. E a maioria das emissões dessa produção vem da criação de gado. Mais de 70 bilhões de animais são criados anualmente para consumo humano, sendo as principais fontes individuais o metano de arrotos e o esterco.
Nesse cenário, a abstenção, ou redução do consumo de produtos de origem animal na dieta humana aparece como opção mais imediata para redução do efeito estufa. Dentro dessa motivação ambiental, existem muitas pessoas que se declaram vegetarianas, mas ainda consomem alguns produtos de origem animal, enquanto outras se declaram como vegetarianas estritas, e deixam de consumir qualquer tipo de carne, ovo ou laticínios. Já os veganos, além da dieta sem produtos animais, não utilizam nenhum outro artigo dessa origem, seja no vestuário, cosméticos ou entretenimento.
“Ainda não não há trabalhos que categorizem no Brasil as motivações para essas dietas em larga escala”, conta Ravi Orsini, Ele explica que existe uma área cinzenta, misturando preocupações éticas, ambientais e de saúde. “Mas uma coisa podemos afirmar: o número de pessoas que reduzem o consumo de carne por questões ambientais está crescendo muito.” Patricia Aguirre é um desses exemplos e explica sua motivação: “Comecei realmente pela questão ambiental, por saber o quanto isso afeta nosso planeta pelo consumo de água e emissão de efeito estufa, mas também pela forma como os animais são criados e tratado até chegarem aos nossos pratos.”
Em termos ambientais, a grande desvantagem do consumo de animais em detrimento às plantas, é a enorme perda energética que a produção do primeiro apresenta. Quando se planta uma semente, com um pouco de terra e água limpa, ela se transforma em um vegetal, erva ou fruta capaz de fornecer grande quantidade de alimento, porque absorveu parcela significativa de energia através da fotossíntese. “Com os animais é o oposto. Sua produção demanda uma enorme quantidade de recursos, mas apenas 10% da energia vai estar disponível para quem for consumi-lo.” Para que uma vaca produza 1 quilo de proteína, ela precisa consumir entre 10 e 16 quilos de cereais, enquanto um porco requer 4 quilos, por exemplo.
Os mais céticos apontam para o trade-off da dieta vegetariana ou vegana, argumentando, por exemplo, que o consumo de soja como proteína substituta incentiva o desmatamento para sua plantação. Para Ravi, essa linha de pensamento não tem muita fundamentação. Ele cita que a cada R$ 1 milhão de receita com pecuária no Brasil, produz-se R$ 26 milhões de impacto não contabilizados no produto. Já para a soja, a cada R$ 1 milhão de receita, produz-se R$ 3 milhões de impacto. “É muito o impacto da soja? Sim, mas a pecuária brasileira eleva isso a outro nível.”
Em suma, consumimos coletivamente muito mais carne do que deveríamos e qualquer tentativa de redução ou substituição desse produto pode contribuir para diminuição do impacto ambiental, especialmente os gases estufa. Apesar questionar a metodologia de alguns estudos, que podem se tornar imprecisos por incluir efeitos não relacionados na conta da pecuária, Ravi afirma: “É consenso que a pecuária é umas das áreas que mais tem impacto ambiental. É a que mais ocupa território e a que mais degrada o solo.”
Uso e mau uso
“Água pra beber, não vai ter. Água pra lavar, não vai dar. Água pra benzer, água pra nadar, nada. Nada.” Os versos de Seu Jorge expõem uma preocupação vital da humanidade. Mas é nebuloso o quanto ações individuais podem contribuir para o problema. No Brasil, por exemplo, a cada 100 litros de água tratada 72 vão para o agronegócio, segundo dados recentes da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação.
“Quando lavo louça, deixo um jarro ao lado e depois que tiro o grosso da sujeira jogo essa água dentro do jarro. Depois jogo essa água em um balde que deixo ao lado do vaso sanitário para usar como descarga”, conta Patricia Aguirre. Além disso, ela revela que também capta a água da máquina de lavar roupa, ao invés de descartá-la, e a direciona para um reservatório usado na limpeza da casa.
“Essas atitudes menores são importantes também, independentemente de estarmos em uma época de seca ou não”, explica Silvia Sayuri. “As ações parecem pequenas, mas quando somadas ou mesmo em campanhas educativas, dentro e fora da escola, são importantes.”
Retomando a questão do agronegócio, segundo o Relatório de Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil, elaborado pela ANA, apesar da agricultura irrigada ser o principal consumidor de água no país, ela resulta em aumento da oferta de alimentos e preços menores em relação àqueles produzidos em áreas não irrigadas graças ao aumento substancial da produtividade. O desperdício geralmente ocorre por irrigações executadas de maneira incorreta, ou ainda pela falta de controle do produtor. A redução do consumo então passa pelo incentivo dos governos locais e federal para que o produtor possa buscar alternativas sem repassar o custo ao consumidor e pelo aumento da fiscalização sobre os mesmos.
A questão da distribuição é outro fator que castiga populações inteiras. Enquanto o Brasil tem a maior reserva de água doce no planeta, muitas pessoas precisam andar quilômetros para sua subsistência. Tokyo, por exemplo, tem 38 milhões de habitantes e desperdiça apenas 2% de sua água, enquanto aqui no País, quase 40% da água tratada é perdida por vazamentos nas tubulações, ligações clandestinas e erros de medição, de acordo com o Instituto Trata Brasil.
“Faço isso, primeiro porque acredito que a água não é um recurso infinito. Com aquecimento global e todas as coisas que estão havendo, a água é um elemento sagrado”, explica Patrícia. “Sou um serzinho fazendo isso, mas com cada um fazendo sua parte temos condições de ‘contaminar’ os outros com essas ideias. Eu realmente lido assim com a água”, completa. Quando se trata desse recurso, vale mais saber usá-lo, do que ostentar sua abundância.
Reuso e reciclagem
Se é necessário usar os recursos com prudência, muitas pessoas notaram também a importância de se reutilizar e reciclar os produtos. Existem dejetos que não podem ser reaproveitados e precisam ser descartados, mas mesmo nesses casos, existem formas de se reduzir o impacto ambiental.
Sayuri sempre traz de volta ao debate a lógica dos 3R’s, e reforça que a primeira etapa é reduzir o consumo de materiais de ciclo de vida longos.
“Já vi uma imagem de um a pilha de fraldas ao lado de uma criança, e a quantidade é muito grande. O caso das mulheres semelhante, a quantidade de absorventes utilizados ao longo da vida é enorme. E são materiais que não podem ser reutilizados, eles precisam ir para os aterros, que nem todas as cidades possuem”.
Por isso ela destaca as ideias alternativas, como o uso de coletores menstruais ou de absorventes reutilizáveis, que duram ano e reduzem a utilização de materiais. É mais uma vez o caso de Patricia Aguirre que aplica a lógica à reutilização de jornais.
“Para evitar usar sacolinhas de plástico nas lixeiras, faço um copinho de jornal, porque o papel é biodegradável. Aprendi uma técnica para dobrar o papel na forma de um baldinho que encaixa dentro da lixeira. É assim que descarto o papel higiênico e lixos orgânicos”.
Jorge Tenório lembra que existem diversos materiais que podem ser reciclados e que para cada tipo existe uma forma específica de reaproveitamento: “Existem muitos caminhos, não existe uma só maneira. A gestão, o gerenciamento e a prática para reciclar alumínio é uma, para reciclar pneu é outra completamente diferente. Para as lâmpadas também, existem uma série de questões, como o local, distância, distinção, enfim. Existem muitas formas”.
Mas o pesquisador alerta para que os consumidores não sejam “hipócritas” e mantenham uma coerência entre discurso e prática: “A redução do canudinho? É importante. Mas se a pessoa compra um tênis novo e joga a embalagem no lixo, está sendo hipócrita. O mesmo se aplica às capinhas de celular e aos próprios equipamentos.”
Quando se fala de reciclagem, a ideia comum ao imaginário das pessoas pode ser relacionada ao ciclo do alumínio, do plástico e do papel. Mas Patrícia lembra que outros ítens do dia-a-dia também podem ser reciclados.
“Podemos reaproveitar até móveis. Pego de caçambas e reutilizo. Tenho uma mesa linda que encontrei e revesti com um mosaico de azulejos coloridos. É usar essas peças soltas com a criatividade para dar um novo destino a elas. Aqui nas redondezas do meu bairro (Higienópolis), as pessoas jogam coisas incríveis no lixo, de quadros à móveis inteiros”.
“O óleo de cozinha também pode ser reciclado. Tenho uma colega que leva para Carapicuíba e um amigo dela transforma isso em sabão e me manda de volta”.
Pontinha do iceberg
A humanidade convive com a verdade inconveniente e por muitas vezes silenciada de que não existe separação entre meio-ambiente e seres humanos. A natureza é tudo o que nos cerca e tudo que deixou de nos cercar ao longo do tempo. Tanto a inocência do individualismo que nega qualquer impacto coletivo, quanto a ingenuidade utópica nas ideias e práticas de preservação ambiental precisam ser revisadas pela ciência e pelo ativismo constantemente.
Não cabe a ninguém decidir quais ações são válidas, pois o mais importante é justamente a coletividade. Se um indivíduo sozinho não consegue salvar o planeta, não significa que ele deixa de precisar ser salvo. “Vi uma frase quando participei de um evento, ‘ninguém é pequeno demais para fazer a diferença’ então acho que cada gota, por menor que seja, faz uma diferença. E você contagia os outros”, lembra a ambientalista Patrícia.
Para Sayuri, os debates precisam ser focados em pontos específicos, porque não dá para englobar tudo de uma vez em um debate produtivo. “Mas sempre tem que se ter o cuidado de pensar de maneira sistêmica, no planeta Terra”, explica. “Campanhas que trazem pontos, como por exemplo o dos canudos, geralmente são só a pontinha do iceberg, mas tem todo um contexto por trás que pode levar as pessoas a repensarem outras ações também.”
Faça um comentário