Base de dados inédita desbanca coesão da Bacia Amazônica

Levantamento sobre distribuição de peixes na Amazônia gera impacto para biogeografia e preservação de peixes

Para estudar sua localização, D'Agosta fez um levantamento das espécies de peixes da Amazônia, criando uma base de dados (Imagem: Reprodução/WikiCommons)

Pela primeira vez na ictiologia, há um levantamento biogeográfico das espécies de peixes em toda Amazônia. A pesquisa gerou uma base de dados sem precedentes, com a análise da distribuição de mais de 4200 espécies, a descoberta de ao menos 15 novas, e atualização do modo de estudar biogeografia. É resultado da tese “História biogeográfica dos peixes da bacia amazônica: uma abordagem metodológica comparativa”.

Durante três anos, Fernando D’Agosta levantou dados a respeito de 40 bacias amazônicas e daquelas em seu entorno: “No fundo, tive que contemplar quase toda a biodiversidade de peixes da América do Sul para poder entender o que estava na Amazônia”. Passou pela literatura primária, de taxonomia, e pela secundária, de listagens de espécies por bacia. Visitou coleções do Instituto Nacional de Pesquisas na Amazônia, Goeldi, Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), Museu Nacional do Rio de Janeiro, Museu de Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica (RS), Smithsonian Institution, California Academy of Sciences – os museus com a maior coleção de Amazônia. “Não era da cultura do ictiólogo brasileiro fazer trabalhos tão abrangentes. Eu acabei trabalhando com a descrença das pessoas”, afirma.

O pesquisador do MZ-USP conta que, antes, só havia estimativas sobre a distribuição dos peixes, baseadas em catálogos. O diferencial de um estudo como o seu é a especificidade: é importante não apenas saber onde as espécies estão, mas também onde não estão. “Pela primeira vez, alguém demonstra que não existe piranha vermelha no rio Negro. Há um buraco no meio da Amazônia”. Segundo ele, essa piranha não suporta água ácida, assim como muitos outros táxons. Por ocorrer em todas as bacias vizinhas, significa que foi extinta do rio.

Mapas com as coordenadas de localização de diferentes espécies de peixe na Amazônia (Imagens: Fernando D’Agosta)

História das águas

A biogeografia dos peixes percorre os mesmos principais passos que a história da Amazônia. De acordo com D’Agosta, as bacias hidrográficas são poli-históricas. “Cada bacia tem uma história exclusiva com outra, e de repente pode trocar com outra bacia, e depois com outra, e depois com outra”, conta. Hoje, o rio Araguaia está conectado à bacia do rio Amazonas e à do Tocantins, mas nem sempre foi assim. O rio Branco é afluente do rio Negro, mas é mais historicamente relacionado ao rio Essequibo, das Guianas, do que com aquele no qual deságua. “Isso se aplica de maneira geral na Amazônia.”

Essa análise desafia a metodologia clássica, chamada biogeografia cladística, em que são definidas áreas a priori (como “Amazônia”, “Pantanal”) para analisar a distribuição de espécies. “Para peixe, isso é muito ruim. Peixe não respeita bacia hidrográfica. As bacias são dinâmicas e temporalmente incongruentes, não temos uma unidade biogeográfica histórica”, analisa o pesquisador.

Antes, o consenso era que a Amazônia era uma unidade biogeográfica coesa, o que permitia a predeterminação de bacias para classificação de espécies. D’Agosta pretende que essa conclusão seja o fim da utilização das bacias hidrográficas como unidades na biogeografia no mundo inteiro, e que a distribuição das espécies cruas seja utilizada como fundamento ao invés disso. A partir do trabalho com dados crus, ele agrupou as espécies em 15 padrões de localização.

Herança de conhecimento

O ictiólogo conta que procura mostrar que as ideias que existem sobre seu campo de pesquisa hoje nada mais são do que muitas ideias dos séculos XIX e XX já publicadas, e rearranjadas com outros dados. “Esse trabalho é para dar créditos para pessoas que falavam coisas muito interessantes, mas ficaram esquecidas na literatura”. Segundo ele, boa parte do trabalho foi baseada em um livro do zoólogo Louis Agassiz, escrito com sua esposa. No intuito de mostrar que Charles Darwin estava errado, passou anos coletando peixes no Brasil. Não apenas desbancou um dos maiores cientistas da época, mas descobriu que existia algum tipo de regionalização dos peixes da Amazônia.

Gráfico que indica a progressão das teorias dentro da história da biogeografia (Imagem: Fernando D’Agosta)

Agassiz percebeu que determinadas espécies ocorriam em alguns lugares e não ocorriam em outros, coletando peixes primeiro na mesma época, e depois em épocas separadas. “As espécies não estão migrando de um lugar para o outro”, diz D’Agosta. “Ele vai em contraposição a todo o pensamento da Europa de que as espécies ocorrem onde estão porque chegam lá andando ou nadando, por migração. Atravessam barreiras geográficas”. Era, de acordo com o pesquisador, uma explicação muito simples.

O entendimento de hoje é de que peixes chegam em bacias através de processos passivos: são capturados através de processos geológicos. Agassiz chegou a essa conclusão em 1868, mas, na ausência de um motivo, afirmou haver uma força da natureza que explicava o movimento dos peixes. “Não teve coragem de desenvolver essa teoria”, declara D’Agosta. “Mas poderia ter desenvolvido a teoria da biogeografia atual há dois séculos atrás.”

Um século depois, Stanley e Mary Whitesman desenvolvem um trabalho que propõe entender a distribuição de peixes na Amazônia a partir do contexto evolutivo. Nasce a biogeografia que pesquisadores como Fernando conhecem.

Futuro da conservação

D’Agosta indica a preservação da biodiversidade de peixes da Amazônia como uma das mais importantes repercussões de seu trabalho. “Não conseguimos preservar aquilo que não conhecemos”, diz. Segundo ele, todos os projetos de conservação do Brasil são baseadas em organismos terrestres – plantas, aves, mamíferos. “Esse trabalho é pioneiro no sentido de oferecer a possibilidade de fazer escolhas de conservação na Amazônia com base nas distribuição dos peixes”.

O pesquisador aponta que existem no Amazonas cerca de 4 mil a 12 mil espécies de peixe, número que irá potencialmente dobrar nos próximos anos. “Isso traz várias implicações de conservação”, diz.

Um grupo de estudos convidou D’Agosta para participar de uma pesquisa sobre a conservação de peixes no Cerrado. O objetivo é aplicar a distribuição das espécies, definir áreas de conservação e checar se as áreas que já existem são realmente importantes para os peixes. “Foram baseadas em grupos de mamíferos, ou plantas. Ninguém nunca se preocupou com peixes. As áreas em que ocorrem espécies endêmicas e restritas estão desprotegidas, no meio de pastagens”, afirma o ictiólogo.

Por enquanto, nenhum programa de conservação foi implementado com base em seu doutorado, mas ele segue com o levantamento de espécies. “Agora estamos expandindo para a América do Sul inteira”, conta. O trabalho se complexificou: D’Agosta se apoia nas coleções de museus para obter coordenadas de onde peixes ocorre. A ideia é plotá-las em um mapa e fazer uma análise geral com base no georreferenciamento.

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