Mais de nove mil quilômetros separam os territórios brasileiro e moçambicano, mas quando se fala das relações econômicas e políticas entre os dois países, essa distância já foi menor. É o que mostra uma pesquisa do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que aborda a relação pendular entre Brasil e Moçambique, motivada por interesses políticos e econômicos, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O responsável pela pesquisa é o mestrando Jean Gustavo Oliveira de Morais. Em um momento anterior ao seu mestrado, Jean esteve em Moçambique, em um intercâmbio. Durante a viagem, a presença brasileira dentro do país africano despertou seu interesse e motivou a sua dissertação “Geopolítica e história econômica das relações Brasil-Moçambique: a longa duração e a inflexão no governo Lula”.
Muito antes do governo Lula
Por meio da documentação analisada, Jean conta que as relações entre Brasil e Moçambique datam de muito antes do governo Lula, com raízes no período da escravidão. “Na época do tráfico de pessoas escravizadas, a rota mais longa de todas foi com Moçambique – rota que no início não era muito importante, porque a maioria dos escravos eram de outros locais, como Angola, Congo e Nigéria. Conforme foi avançando o processo abolicionista pela África, também avançava uma série de acordos ‘por baixo dos panos’ entre Portugal e Inglaterra, até chegar um momento em que Portugal não tinha como pegar escravos africanos se não fosse de Moçambique”. Desse modo, a intensificação do tráfico de escravos em Moçambique ocorreu, tardiamente, em comparação aos outros países da África, no século 19. Após a abolição da escravidão, o Brasil cortou laços com Moçambique, em um movimento desejado tanto pela elite brasileira quanto pelas grandes potências mundiais da época.
O contato com países do continente africano foi retomado nos governos de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, porém, de uma forma muito tímida e apenas com aqueles que eram independentes. Segundo Jean, “o Brasil não moveu uma palha pela independência de Moçambique”, e apenas começou a se aproximar do país quando este estava prestes a se tornar independente. Demorou para o Brasil conquistar a confiança do governo moçambicano: alguns anos após a sua independência, o país vivia uma guerra muito violenta, enquanto o Brasil passava por uma crise econômica, nos anos 80, dificultando a aproximação dos governos. “Até que no governo Sarney, foi fundado a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que é um fato relevante para promover essa aproximação”, conta o pesquisador.
Lula e a ativação da economia
Os laços começaram a se estreitar a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso. Nesse período, foi anunciado o perdão de 95% da dívida externa de Moçambique – dívida oriunda de créditos para a compra de produtos brasileiros, um mecanismo artificial para estimular o comércio. Essa medida funcionou, no entanto, Moçambique nunca pagou a dívida. O perdão da dívida foi efetivado somente no governo Lula, onde foi concedido novos empréstimos.
Foi observado também que apesar dessa aproximação com a África, o aumento do comércio com Moçambique ocorreu em um ritmo muito menor do que o comércio do Brasil com o mundo. Apesar disso, “o maior investimento brasileiro na África foi em Moçambique; foi o investimento da Vale de carvão mineral”, relata o pesquisador.
“A análise de longa duração permite ver isso”, conta Jean, sobre um dos conceitos utilizados em seu trabalho. A longa duração é um termo criado pelo francês Fernand Braudel, que aborda os acontecimentos históricos que transcorrem por longos períodos de tempo. “Apesar das mudanças que ocorreram em ambos os países com o passar dos anos, e suas diferenças, uma característica se manteve similar entre Brasil e Moçambique até hoje, desde a época do tráfico: são áreas subordinadas a economia global”.
Além disso, o pesquisador pontua que, se antes era a mão de obra escrava que sustentava o desenvolvimento econômico brasileiro, hoje a principal herança da aproximação brasileira com Moçambique no governo Lula, é o investimento da Vale, que trouxe consigo sua própria infraestrutura e aumentou a utilização do porto de Nacala.
Para Jean, a análise de longa duração possibilita perceber as “idas e vindas” nas relações dos dois países. “Se eu não fizesse esse pano de fundo inicial das relações e não estudasse um pouco do que veio depois [do governo Lula], ficaria difícil identificar o que eu chamo de inflexão das relações Brasil-Moçambique”. Ele conta que inflexão é como se fosse um “divisor de águas”, um fenômeno que promove uma mudança significativa nos acontecimentos. “No começo da aproximação brasileira com Moçambique, o discurso era de solidariedade e reparação dos danos do tráfico de escravos, mas com o tempo, o que fica dessa relação é a presença do capital brasileiro”.
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