Populações deslocadas pela construção de barragens têm sua identidade apagada e suas terras roubadas

Por conta da construção de grandes hidrelétricas, os povos da floresta são obrigados a abandonar suas casas e seu modo de vida

A usina hidrelétrica de Santo Antônio faz parte do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira e fica em Rondônia, no meio da Floresta Amazônica (Imagem: Mario Friedlander/ PULSAR IMAGEM)

A construção de grandes barragens para a instalação de hidrelétricas é também sinônimo do deslocamento compulsório de populações locais, que têm seu sofrimento ignorado em nome de ideias como “progresso” e “desenvolvimento”. Em sua tese de doutorado, defendida em 2018 no Instituto de Energia e Meio Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE), Daniel Roquetti coloca luz sobre todos os desafios de adaptação enfrentados pelas comunidades deslocadas, ademais, ele estuda especificamente a construção do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, em Rondônia.

O Complexo é formado pelas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, construídas entre 2008 e 2016, e desde o início as obras foram acompanhadas por discussões e críticas relacionadas aos impactos socioambientais. Mais de 2.800 pessoas foram obrigadas a sair de suas casas e mudar suas vidas em um período de poucos meses, sem consulta prévia, sem a possibilidade de dizer não. “As pessoas perdem qualquer poder de agência sobre o próprio futuro”, Daniel ressalta. Além disso, as populações deslocadas geralmente são ribeirinhas ou indígenas e têm modos de vidas diretamente relacionados ao uso de recursos naturais, ou seja, os impactos gerados pelas mudanças ambientais se somam aos estresses causados pelo deslocamento forçado.

Os grandes desafios de adaptação enfrentados pelas populações podem ser traçados ao que o pesquisador define como um “projeto de desenvolvimento exógeno”. Todos os planos e decisões são feitos e impostos por pessoas estranhas à realidade local, sem levar em consideração as opiniões e experiência da população afetada. 

A consequência imediata da construção de uma grande hidrelétrica é a interferência física no local: fauna, flora e até mesmo o solo são afetados. Daniel explica que “é preciso reorganizar todo o ambiente e controlar todas as variáveis para gerar uma determinada quantidade de energia”. Essas mudanças fazem com que as ocupações que dependem de menos recursos naturais passem a ser mais valorizadas pelas comunidades. As atividades ligadas aos ecossistemas são abandonadas, como, por exemplo, a pesca ou a agricultura de várzea dependente do regime de cheias e da oscilação do rio, fatores que deixam de existir após a construção da barragem. 

Atividades que dependem do rio, como a pesca, são intensamente afetadas pelas barragens (Imagem: Reprodução/((o))eco)

O abandono dessas atividades também representa um enorme custo imaterial: a cultura e os modos de vida ribeirinhos e indígenas se perdem conforme a população deixa de lado seus costumes. Os conhecimentos passados de geração em geração e os hábitos, que não visam necessariamente o lucro, vão sendo substituídos por profissões que não se relacionam aos ecossistemas. Para tornar essa transição possível, são adotadas técnicas de controle das condições naturais, que antes eram respeitadas. 

As comunidades geralmente recebem assistência técnica para aprenderem a adaptar suas atividades a uma lógica de mercado. A agricultura passa a receber agrotóxicos, fertilizantes e corretores de solo; a pesca é substituída por tanques de criação de peixes, entre outras medidas. O pesquisador deixa claro que “se essas pessoas não quiserem passar fome, elas vão ter que se sujeitar a situações e formas de viver que não são aquelas que elas planejaram e estavam acostumadas”. 

No entanto, essa assistência vem acompanhada de um discurso fortemente etnocêntrico, que não respeita e menospreza a sabedoria das comunidades locais. Daniel contou que era comum ouvir dos moradores: “Veio um menino do sudeste formado em agronomia me ensinar a plantar, mas eu planto há 40 anos e eles têm 25 de vida. Então quem estava ensinando era eu, mas eles não me ouviam”. Alguns agricultores, de fato, passam a ganhar mais dinheiro com as técnicas de manipulação do ecossistema, mas esta visão que tem o lucro como seu maior objetivo faz parte de um modo de vida ocidental e capitalista, muito diferente do modo de vida dos povos da floresta.

Ao serem forçosamente inseridas nessa dinâmica de mercado, as populações têm pouco tempo para se adaptar cultural e burocraticamente. Atividades informais precisam ser regularizadas, no entanto alguns sequer possuem o título da própria terra. A prática de escambo diminui, junto a pesca e agricultura de subsistência, e os indivíduos passam a ter que comprar aquilo que antes eles mesmos produziam. A mudança brusca no modo de vida faz com que essas pessoas fiquem em situação de insegurança alimentar. O deslocamento compulsório simboliza para muitas comunidades o primeiro contato com o Estado, uma instituição que deveria garantir seus direitos, mas aparece justamente para retirá-los.

Comunidades não têm poder de escolha sobre deixar ou não suas casas (Imagem: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

“O papel das assistências é também ensinar os indivíduos a se inserir na institucionalidade requerida, tanto pelo mercado, como pelo Estado”, diz o pesquisador. Geralmente, tanto a auxílio técnico quanto o saneamento, as escolas e as habitações do reassentamento coletivo são responsabilidade da empresa proprietária da hidrelétrica, que impõe as condições nas quais esse projeto acontece, enquanto o governo se exime de responsabilidade. Essas empresas estão mais preocupadas com seus gastos do que com as demandas das comunidades deslocadas.  

O processo de deslocamento é considerado um sucesso quando as populações passam a produzir e a lucrar mais do que antes. No entanto, “para muitas das pessoas reassentadas, sucesso não é o acúmulo de riqueza material, é a possibilidade de escolher o que fazer, quando e onde fazê-lo”, explica Daniel. Muitas pessoas não aceitam ou vão embora dos reassentamentos coletivos justamente por não se sentirem em casa. Podemos tomar como exemplo as habitações destes locais, feitas de alvenaria, não possuem o conforto térmico tão necessário em locais quentes como Rondônia, e tornam indispensável a instalação de aparelhos de ar condicionado, diferente da madeira tradicionalmente usada pelos povos da floresta.

As comunidades reassentadas precisam se adaptar, também, à explosão demográfica que ocorre no local, ao crescimento do mercado de drogas lícitas e ilícitas e ao aumento da violência. Todas estas são marcas registradas de cidades afetadas pela construção de barragens. A relação entre o governo e as grandes empresas de construção acaba por esbarrar nos direitos de populações mais vulneráveis. Como disse Daniel: “Se o Estado fosse organizado para atender o interesse das pessoas e não de grandes corporações, os povos da floresta receberiam assistência sempre que precisassem e não como forma de diminuir os impactos de um deslocamento forçado.”

A única medida que pode auxiliar a reduzir o estresse do reassentamento, para o pesquisador, seria a existência de um processo de escuta das populações locais. A primeira violação de direitos é não escutar o que as comunidades têm a dizer. “Os projetos de grandes obras são feitos inteiramente nos grandes centros comerciais, dentro de um escritório”, o pesquisador explica que os povos diretamente afetados deveriam estar presentes desde o início do projeto. Seria preciso entender e organizar as demandas dessas pessoas, de forma que o processo de construção reflita esses interesses e os coloque acima dos interesses corporativos.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*