A redução da maioridade penal é uma das bandeiras do presidente Jair Bolsonaro. No entanto, uma lógica do sistema carcerário já existe na Fundação Casa: “é dita como instituição socioeducativa, mas a todo momento grande parte dos funcionários carimba que o adolescente está ali cumprindo um castigo e que ele é infrator”. Quem afirma é Talita Alessandra Tristão, autora do mestrado Educação Privada de Liberdade: um estudo das práticas pedagógicas utilizadas com adolescentes em conflito com a lei, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.
O artigo 227 da Constituição Federal afirma que é dever do Estado assegurar educação à criança e ao adolescente. Tristão considera essa a principal diferença da Fundação Casa em relação ao sistema penitenciário: “a educação obrigatoriamente está no meio da instituição, então seria meio que um respiro entre as violações que acontecem”. Na parte da manhã, cumpre-se a educação formal, de nível fundamental e médio, que é feita com materiais das escolas públicas. Na parte da tarde, cursos culturais ou de formação profissional.
Essa última – a educação no campo não formal – serviu como fonte, porque “são educadores que trabalham por meio de ONGs e, assim, não teriam um olhar viciado pela instituição”, explica. Oito educadores foram entrevistados, quatro mulheres e quatro homens. Ela achou importante ter um equilíbrio, porque há especificidades para mulheres, como o uso obrigatório de avental em unidades masculinas.
“Foi unânime que o maior problema em relação a educação é a própria instituição, que impossibilita os adolescentes a vivenciar o ócio: não há autonomia do próprio corpo ou do próprio tempo”, afirma Tristão. Um dos entrevistados, Errico, acredita que trabalhar na Fundação Casa é fácil e triste ao mesmo tempo. “Ele disse ser fácil porque o adolescente vai estar lá, o conteúdo sendo bom ou não. E triste por todo esse contexto de alto controle e negligência”, relembra a pesquisadora.
A negligência começa no desrespeito às orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que colocam a internação como o último recurso. “O adolescente, por lei, não deveria ser internado de imediato, mas na prática ele é”, pontua Tristão. “A maior parte dos adolescentes está em internação, inclusive com ato infracional leve”. Além disso, deveriam cumprir medida perto da família, mas há casos em que “meninas do interior precisam vir à capital porque não existe Fundação Casa na cidade em que moram, e isso dificulta as visitas e o vínculo familiar”.
Nos presídios, existem celas de isolamento como punição aos adultos. Na Fundação Casa, esse castigo institucional é chamado de tranca. “Quando o adolescente faz algo considerado contravenção, fica isolado”, explica Talita. “Durante esse período, é impedido de frequentar cursos e aulas: algo inconstitucional, mas que acontece. Algumas vezes eu ouvia adolescente gritando por socorro, pedindo para o PS (Pronto Socorro) vir.”
O estudo ouviu uma jovem, Amélia, que ficou internada na Fundação por 10 meses e agora está em liberdade. Ela conta que, certa vez, uma menina estava com dor de barriga, mas foi impedida de usar o banheiro. Na hora do banho, teve diarréia. Foi agredida pelas funcionárias, colocaram-na na tranca e as próprias adolescentes começaram a zombar. “Ela foi transferida de unidade por conta disso, é uma violação”, afirma Tristão.
A pesquisadora lembra que uma das educadoras, Clarice, até diz que a Fundação Casa ensina a mentir. “Por definir qual comportamento é aceitável ou não, os adolescentes repetem esse padrão para se ajustar”, diz Tristão, que enfatiza como os símbolos da educação costumam ser preservados até em momentos de rebelião. Um dos entrevistados no mestrado, Johni, exemplificou: uma vez destruíram tudo, mas o plantio de feijão que fizeram em uma oficina foi mantido.
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