No dia 24 de junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso suspendeu a Medida Provisória 886 editada pelo governo, que transferia ao Ministério da Agricultura a responsabilidade de demarcar terras indígenas. A pasta da Agricultura é chefiada por Tereza Cristina, política ligada ao setor do agronegócio. Agora, a demarcação volta para as mãos da Funai (Fundação Nacional do Índio). Entretanto, a decisão é provisória e ainda será analisada pelo Supremo, o que deixa aberta a discussão.
“É basicamente colocar a raposa cuidando do galinheiro”, comenta Karen Shiratori, antropóloga especialista em etnologia indígena, demonstrando preocupação. Entre 2011 e 2018, esteve envolvida com mestrado e doutorado, que cursou no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Atualmente, faz pós-doutorado no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, compondo o grupo de pesquisadores do Centro de Estudos Ameríndios (Cesta).
Na sua avaliação, o cenário político não poderia ser mais desastroso para os povos indígenas. “Colocar os ruralistas responsáveis pela demarcação significa inviabilizar completamente esse processo”, afirma numa crítica à medida, um gesto claro de agrado a esse grupo, base de apoio do governo. Segundo a Constituição Federal, em seu artigo 231, as terras indígenas são um direito originário, isto é, anterior à criação do Estado, que é responsável pela sua implementação.
A Funai, em seu estatuto, traz como deveres não só a demarcação, como também a delimitação, regularização e registro das terras indígenas. Como se não bastasse, o órgão tem o encargo de monitorar e fiscalizar essas terras, além de coordenar a garantir a implementação de políticas de proteção aos povos isolados e recém-contatados.
Em levantamento de 2017 feito pela agência Aos Fatos em parceria com o site The Intercept, a Funai despendia 12 reais por índio. O orçamento do órgão, que naquele momento já vinha de uma queda, se agravou ao ponto de hoje ele sofrer com um contingenciamento de 90% de seus recursos, além de falta de servidores. “Então, a Funai evidentemente não consegue realizar suas responsabilidades não por incompetência de sua administração, mas sobretudo porque existe um sucateamento intencional, do ponto de vista financeiro, pensado para fazê-la não funcionar. E isso não é de hoje”, aponta Karen.
Quando o discurso vira realidade
É normal que presidentes façam diversas promessas durante a campanha. É comum também que muitas delas não saiam do campo das ideias. Mas com Bolsonaro, no que se refere à questão indígena, não foram precisos seis meses para o prometido se cumprir. “Se eu me tornar presidente, não haverá um centímetro quadrado de terra designada para reservas indígenas”, afirmou ele num evento de campanha em 2017. Atualmente, crescem relatos não só de invasões de terras indígenas, como também de violência contra membros das aldeias. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as invasões cresceram 150% desde que Bolsonaro foi eleito.
“Aumenta a confiança por parte dos detentores de terras para expandir pasto, plantação, garimpagem, extração ilegal de madeira”, é como explica Karen, apontando que tais agentes confiam cada vez mais na impunidade. “Há um descrédito às operações contrárias ao desmatamento. Então, tudo isso dá segurança para essas pessoas infringirem a lei”.
O elo entre o habitante e o habitat
Ao mencionar o desmatamento, Karen evidencia que a proteção ambiental está intimamente ligada à preservação de povos indígenas. “Recentemente, tem-se reconhecido cada vez mais o papel dos povos indígenas para a conservação e produção da biodiversidade. Num contexto em que catástrofes ambientais e extinção de espécies animais tornam-se cada vez mais comuns, conforme a pesquisadora, “povos que têm um modo de vida e conhecimentos que preservam a natureza são uma espécie de salvação planetária. Um pensamento minimamente razoável estaria preocupado”. Para ela, as pessoas que vivem nas reservas “estão explorando, porque terra para povos indígenas não é um recurso, uma mercadoria. Eles estão lá numa relação que é ecologicamente rica. Onde há índios, há florestas – e vice-versa, porque são eles que a cultivam, garantem e conservam”.
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