Sobrevivente ao câncer tende a mudar estilo de vida

Cuidados paliativos não são o suficiente para tratar de aspectos psicológicos da doença (Imagem: YanaVasileva | iStock)

Pessoas que superam o câncer procuram mudar a forma com que viviam antes da doença, pontuou uma pesquisa feita no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Igor Bueno, autor da dissertação, explica que, após muitas experiências por vezes traumáticas vinculadas aos tratamentos, existe uma tendência de ressignificar papéis antes assumidos, como de provedor da família ou cuidador, e de valorizar partes da vida que antes não eram tão valorizadas. O estudo foi feito a partir de uma série de entrevistas com indivíduos que se encaixavam na linha de corte de 2 a 7 anos após o fim dos tratamentos, e pautou-se em análises qualitativas semi-estruturadas do “eu” após o câncer e das estruturas do “eu”.

O complexo do “eu”, ou ego, explica Bueno, é um termo utilizado pela Psicologia Analítica de Jung. Representa o centro da consciência de um indivíduo, ou seja, toda noção que ele tem de si (qualidades, defeitos, personalidade), além de mediar a consciência e a inconsciência. Também é responsável por organizar sentimentos, recordações e pensamentos, e filtrar as experiências do dia-a-dia que serão “vividas” pelo consciente e as que serão delegadas ao inconsciente, na forma de sonhos, desejos, medos, potencial criativo. Segundo o pesquisador, essas transformações na forma de ver o mundo e de viver advêm do “complexo do eu”.

Como o “eu” é essa estrutura organizadora do ser, uma doença tal qual o câncer pode o desorganizar, desestabilizar. Bueno explica: “O ‘eu’ é uma instância importante para aguentarmos as dificuldades da vida. Buscamos recursos dentro de nós para superar alguma coisa e, como o câncer significa um risco muito grande à vida, o ‘eu’ acaba se desgastando muito”. Nesse sentido, a identidade do próprio indivíduo que sofre com a doença se torna fragilizada e passa a questionar valores antes muito bem assentados e estabelecidos. Bueno exemplifica com o papel do trabalho: uma pessoa que antes vivia em função de sua profissão acaba por valorizar outras áreas da vida que antes não eram valorizadas, como prazeres do corpo e espiritualidade.

E sobre essa busca por valorizar o corpo e esferas espirituais, Bueno comenta que é estabelecida uma ambiguidade: ao mesmo tempo em há uma tentativa hedonista de apreciar mais experiências corporais, há também uma procura por conexões com aspectos transcendentais, não tão ligados à vida material. Ela ocorre porque o “eu”, partindo da necessidade de criar uma integridade como base para seu funcionamento, tenta balancear esses dois lados, mas não necessariamente consegue equilibrar, tampouco reconhecer, que essa ambiguidade existe. “Pode ter uma pessoa que se apega muito à religião depois da doença, mas que, numa esfera social, se torna mais ‘egoísta’ por priorizar prazeres mais imediatos e por não ter paciência, por exemplo, a situações ou pessoas que ela não gosta”, explica o pesquisador.

Bueno também relata que muitos dos participantes sofreram uma inversão, ou metanoia, dentro da perspectiva junguiana. Ela faz parte de um processo de desenvolvimento maior da personalidade que vai além do “eu” e tange todos os aspectos da personalidade consciente e inconsciente do indivíduo. “A metanoia é uma inversão de valores que acontece em todo mundo, mas que é catalisada pela doença: uma pessoa que está muito mais adaptada a viver de uma forma extrovertida passa a ser mais introvertida, e vice-versa”, explica.

Ele acrescenta ainda que, embora esses já fossem resultados um tanto esperados, era necessário um estudo que os analisasse em profundidade: “Parece óbvio dizer que quem supera um câncer procura viver de outra maneira, mas acho que era necessário um estudo que comprovasse isso de alguma forma. Fala-se muito de cuidados paliativos e preventivos, mas pouco sobre o psicológico de quem supera a doença”.

Além disso, reitera que os participantes que passam pelo câncer ainda precisam de suporte psicológico e assistencial: “A experiência é muito chocante e esse ‘eu’, o centro de organização da consciência, ainda está abalado. São anos depois do fim dos tratamentos e as pessoas ainda apresentam sintomas e sinais psicológicos que mostram que falta um processo de reelaboração do ‘eu’”.

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