População resiste à expansão de cidades na Amazônia

Indígenas, seringueiros e ribeirinhos preservam florestas acreanas e sobrevivem a expansões urbanas, além de levarem para as cidades suas práticas espaciais tradicionais

Curso médio do Rio Purus, que nasce nos Andes e segue até a Alta Amazônia, no estado do Acre (região de cabeceira). Fonte: Brugnara, 2018, sobre imagem do Google Earth (2012).

A permanência dos povos da floresta na região da Amazônia Sul-Ocidental tem sido bem-sucedida. Apesar de a cidade crescer sobre esses indígenas, ribeirinhos e seringueiros (e sobre a floresta), eles sobrevivem e resistem, defendendo seu modo de vida e trazendo seus costumes para a cidade quando precisam migrar. Nessas duas situações – quando migram para áreas urbanas e quando permanecem na floresta –, há tipos diferentes de resistência: no primeiro caso, a cultura permanece conforme tradições são mantidas; como o hábito de se deslocar, de reunir-se para cantar à noite, e de plantar roças no quintal, mesmo que esse seja pequeno. No segundo caso, a resistência se dá pelo fato de que, defendendo as florestas e permanecendo nelas, essas populações tradicionais protegem todo o seu modo de vida (suas formas de cura, ligadas à ayahuasca e outras plantas da floresta, suas dinâmicas sociais, seus ritos, suas raízes).

É sobre esse assunto, delicado e necessário, que a pesquisadora Gisela de Andrade Brugnara disserta em seu doutorado “A cultura vem a pé: práticas espaciais na Alta Amazônia”, realizada pela FAU-USP e publicada logo no fim do ano passado. Nessa tese, ela analisa de perto, em pesquisa de campo feita no Acre (onde mora atualmente) as questões que permeiam a floresta amazônica desse estado (região chamada de Amazônia Sul-Ocidental), e o encontro de seus povos tradicionais com as ocupações urbanas de populações ocidentalizadas.

Tal contato entre povos ocidentais e os indígenas dessa região já vinha acontecendo desde o final do século XIX, com a ida de seringueiros nordestinos para essas terras. Gisela diz que o mal causado aos indígenas, nessa situação, foi grande, uma vez que parte foi assassinada e parte escravizada pelas empresas seringalistas; mas a floresta amazônica, nessa época, não foi desmatada. O problema maior foi durante o período militar, nos anos 70, quando um programa governamental lançou pessoas mais ao sul do país para ocupar a Amazônia, utilizando-se de práticas agrícolas que causaram um grande desmatamento, aumentado com o tempo.

A pesquisadora conclui que, apesar de serem colocados em risco por essas situações, essas populações tradicionais têm conseguido permanecer, tanto lutando pela manutenção da floresta, quanto se adaptando às cidades (interpondo modos diferenciados de ocupação do espaço).

Conflitos

Esse encontro da floresta com a cidade na Alta Amazônia não é tão recente: desde a década de 70, no período do regime militar, pessoas majoritariamente da região Sudeste e Sul foram enviadas para essa região com o objetivo de ocupá-la. O slogan do governo: “Integrar para não entregar”. Esse programa governamental tinha a tentativa de “integrar” a Amazônia ao restante do território nacional para que ela não fosse ocupada por outros países. “Esse plano foi lastreado por ações de infraestrutura muito impactantes, como por exemplo a abertura de rodovias (entre elas, a Transamazônica), com essa ideia de expansão do Brasil através da fronteira agrícola”, diz Gisela.

Ainda segundo a pesquisadora, a pecuária acabou derrubando a floresta para colocar em seu lugar um modelo de uso da terra completamente “exógeno”, diferente do que se fazia por ali até então. “Aqui, a floresta ainda estava preservada, mas, a partir dos anos 70, começaram a implantar um modelo de agricultura e pecuária que a derrubava para plantar soja ou colocar gado no lugar. Então foi um momento muito violento, que alterou completamente o modo de vida das populações”.

Desde então, a população urbana só cresce, ocupando cada vez mais as zonas antes dominadas pela floresta amazônica.

Evolução da ocupação urbana em Rio Branco, de 1948 a 2005. Fonte: Brugnara, 2018, sobre Mapas de diagnóstico do Plano Diretor de Rio Branco (2006).

Resistências

O primeiro encontro marcante dos brancos com os indígenas, nessa região da Amazônia, foi há não muito tempo: há cerca de 140 anos atrás, no final do século XIX. Nessa época, os povos que vieram para essa região como mão de obra foram enviados do Nordeste (do sertão nordestino) por empresas seringalistas, para que passassem a retirar látex (borracha) dos seringais amazônicos acreanos. O mal foi grande por um lado, menor por outro: os seringalistas acabaram matando parte da população indígena que se encontrava ali, e os indígenas, em muitas situações, foram escravizados pelas empresas seringalistas e forçados a trabalhar também como extrativistas, juntamente aos trabalhadores seringueiros imigrantes.

No entanto, (e aí temos o ponto positivo), esse povo que chegou não destruiu a floresta: os trabalhadores precisavam dela para extrair borracha, e por isso não a desmatavam. No fundo, como diz Gisela, “eles foram jogados para dentro da mata profunda para viverem isolados, muitas vezes sem família, e só conseguiram sobreviver, porque os índios os ensinaram a tirar remédio, a saber o que comer, a saber como andar, como navegar, e como fazer canoas dentro desses espaços”.

O segundo encontro marcante, já registrado aqui, de 1970, foi ainda mais violento, porque não só machucou comunidades indígenas e extrativistas, como também tentou e conseguiu destruir grande parte de sua floresta. E destruir sua floresta é destruir seu modo de vida, como explica Gisela.

Como modo de resistir, movimentos importantes vieram à tona, sendo notável o regido por Chico Mendes. Populações locais (os indígenas, seringueiros e ribeirinhos) formaram a então chamada Aliança dos Povos da Floresta, que tinha o intuito de combater o desmatamento promovido por um modelo econômico que chegava de regiões mais ao sul do país e derrubava tudo.

Além disso, a resistência também se deu pela maneira como os povos da floresta, que vivem nas cidades hoje, mantiveram sua cultura no cotidiano. Como o próprio nome da tese faz referência (“a cultura vem a pé”), as tradições de se deslocar constantemente acabaram gerando um outro padrão de ocupação: a multilocalidade – ou seja, nem é uma ocupação rural, nem urbana. A floresta e cidade são, ao mesmo tempo, espaços comuns da vida cotidiana. “É esse ir e vir constante que hoje amplia as territorialidades para as bordas das cidades e vem criando territórios interculturais, que limitam a expansão urbana desenfreada, imprimem a diferença na paisagem e preservam, dinamicamente, a cultura”, explica Gisela.

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