“Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar”. Foi com essa frase de Graciliano Ramos em “Vidas Secas” que a pesquisadora e jornalista Nádia Costa Pontes iniciou sua dissertação de mestrado pelo Instituto de Energia e Ambiente (IEE). Em um momento histórico em que as mudanças climáticas são inegáveis, a transposição do rio São Francisco poderia representar uma potencial medida de adaptação. Mas as falhas de planejamento reduziram o projeto a uma mera obra de grandes proporções, cujos resultados práticos são incertos. Principalmente para a população mais vulnerável.
A transposição é chamada oficialmente pelo governo de Projeto de Integração do rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (PISF). A ideia é que a água saia da bacia doadora – a do São Francisco – por meio de canais, e chegue ao semiárido, local mais afetado pelas secas. Há dois eixos principais: o Norte, ainda em construção, e o Leste, já terminado e de menor tamanho. Nádia analisou o Leste e chegou à conclusão: “A distribuição para a população mais vulnerável praticamente não existe.”
De fato, segundo o levantamento da pesquisa, que incluiu a leitura de mais de duas mil páginas de projetos executivos, a população beneficiada será aquela que já tem acesso à água, por estar perto dos grandes centros urbanos. O discurso de que a transposição vai levar água para os mais pobres é ilusório, como constata não somente a pesquisa do IEE mas também estudos como o da Agência Executiva de Gestão de Águas (Aesa). No entanto, há ainda a esperança. “A população do semiárido está aguardando, com a esperança daquela água mudar a vida”, relata Nádia.
O mal planejamento da transposição impede que o projeto seja efetivo. Mesmo se a água fosse distribuída como foi previsto, a população mais vulnerável ainda sairia pouco beneficiada. Iria receber quantidade de água inferior ao que se esperava de uma infraestrutura com tamanhas proporções. “A obra poderia ser uma medida de adaptação às mudanças climáticas se esse processo de distribuição fosse bem pensado”, diz a pesquisadora.
Os dados levantados na tese mostram que as cidades teriam uma quantidade de água insatisfatória, considerando as proporções da obra, como mostra o gráfico a seguir:
Um dos erros do planejamento foi a falta de sintonia com o Comitê de Bacias Hidrográficas do São Francisco, que se mostrava contra o projeto por acreditar que a bacia não teria condições de doar água para outras regiões. É importante notar que o São Francisco, chamado “rio da integração nacional” por sua grande extensão, sofre processos de degradação desde sua nascente, em Minas Gerais. A exploração siderúrgica, a mineração e a irrigação para a agricultura são algumas das atividades que prejudicam o corpo hídrico.
Outro ponto de crítica do Comitê foi a ausência de embasamento científico e de estudos profundos sobre os impactos ambientais que a transposição causaria. “Não podemos planejar grandes obras hídricas sem discutir mudanças climáticas e sem considerar como as pessoas vão se adaptar”, diz Nádia. De fato, o debate não foi incluído no planejamento público. E as consequências podem ser desastrosas.
O Nordeste é uma das regiões brasileiras que mais sofre com o aquecimento global e com a ocorrência de eventos extremos, a exemplo da seca prolongada que Nádia presenciou no momento de sua pesquisa. O processo de desertificação, por exemplo, prejudica a população que sobrevive da agricultura de subsistência. Além disso, as migrações e o desemprego rural são realidade na região há anos, como retratou o próprio Graciliano Ramos em “Vidas Secas”. As mudanças climáticas dos últimos anos tendem a aumentar a ocorrência desses tristes fenômenos.
Enquanto isso, a população padece. Durante a pesquisa, Nádia conseguiu mostrar como a dependência do caminhão-pipa aumentou no município de Floresta, em Pernambuco. A pesquisa relata até mesmo casos de roubo d’água, tamanha a necessidade do recurso no semiárido.
Entender a transposição: desafio constante
Pesquisar sobre uma obra governamental é desafiador. A falta de dados e, nesse caso, a distância geográfica são obstáculos a serem superados. Nádia relata que “sentia sempre muita falta, até como cidadã, de entender como a transposição afetava diretamente a vida das pessoas nas regiões mais vulneráveis.” Apesar de já trabalhar com meio ambiente, no aspecto jornalístico, a pesquisadora disse que, ao fazer o mestrado, o objetivo era dar uma contribuição prática para a população, que não entende em que proporções esse projeto faraônico pode afetar suas vidas.
Durante suas duas visitas em campo, acompanhada de um membro do Ministério da Integração Nacional, ela percebeu que até mesmo as autoridades municipais tinham dúvidas sobre a transposição e de sua participação no processo. Informações de como e quando a água iria chegar também não eram claras. A sensação é de que, mesmo sendo uma iniciativa para o Nordeste, as grandes decisões ainda estavam nas mãos dos “centros”. As autoridades em seus gabinetes no Planalto Central ditavam — e ainda ditam — o que acontece com a população em casebres no semiárido. Muitas vezes, sem nunca ter posto os pés na região.
Assim, é possível perceber que as falhas no planejamento da transposição remetem a uma atitude já conhecida por parte do governo brasileiro. A desconsideração das autoridades com a população vulnerável é denunciada desde que o Soldado Amarelo apareceu na vida de Fabiano, em “Vidas Secas”. Oitenta e um anos após a publicação da obra, Fabianos ao redor do Brasil continuam sendo assombrados pelas diversas formas de opressão.
Bom dia
Só sabe quem está lá precisando de água.