Mudança na segurança pública foi essencial para processo de paz na Colômbia

Pesquisadora analisa como coalizão transformou política do país e possibilitou acordo de paz

Narrativa mudou drasticamente de um governo para o outro / Imagem: Daniel Medina

No momento em que Natália Pollachi escolheu o assunto para a sua dissertação de Mestrado para o Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), o tema encontrava-se em alta nos noticiários internacionais: a transição para a abertura de diálogo e acordos de paz com a guerrilha colombiana eram amplamente debatidos. Tratava-se de uma mudança de postura advinda do governo colombiano, passando de uma política meramente combativa para a conciliatória, de negociação. “Foi uma mudança brusca de direção. A Colômbia tinha um presidente que defendia uma política exclusivamente militar muito forte contra os grupos armados. Seu sucessor, que era o Ministro de Defesa e do mesmo partido, que esperava que continuasse essas políticas, abriu as negociações de paz. Eu queria entender como construiu essa narrativa para a política e, posteriormente, foi reeleito, então: como conseguiu alterar a opinião pública, se é que conseguiu.”

Na Colômbia, houve sempre dois partidos: liberal e conservador. “Eram, na verdade, duas vertentes da mesma elite, os únicos que acessaram os cargos políticos até a década de 1980. O poder no nível local era muito discricionário, existiam muitas milícias de latifundiários”, destaca. Após revoltas populares, os camponeses e pequenos agricultores começaram a criar suas próprias defesas armadas. Haviam diversas parcelas da população pegando em armas, a história do país sempre esteve pautada pelo combate, o conflito. 

Acompanhando um contexto internacional de Guerra Fria e Revolução Cubana, narrativas ideológicas diferentes começaram a circular. Após levantes populares de maior dimensão, alguns desses grupos se juntaram em 1964 e configuraram as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), consolidando essas narrativas contrárias à hegemonia elitista e reivindicando uma maior participação camponesa, principalmente em torno da reforma agrária. O embate constante entre milícias e o governo consolidou-se durante o século 20, somou-se à Guerra às Drogas e marcou o processo histórico da Colômbia.

O presidente Álvaro Uribe é eleito no ano de 2002, em primeiro turno, em um momento de fracasso grave de negociação, e acirramento das ações militares das Farc (derrubada de aviões, sequestro de políticos importantes). Após os atentados de 11 de setembro de 2001, que tensionaram toda a percepção internacional a respeito do conflito armado, as Farcs foram inseridas na lista de organizações terroristas do EUA.

Além disso, a parcela retórica do diálogo entre ambos sempre foi bastante tensionada: por um lado, a noção de que, a partir do momento em que se entende as Farc como terroristas, não haveria possibilidade de negociação. Do outro, a ideia de que, o não reconhecimento do teor político reivindicatório da organização, também impossibilitava um diálogo em plano de igualdade.

A mudança de política

De 2002 a 2010, a narrativa era de combate ao narcoterrorismo dentro da Colômbia, e especificamente no caso das Farc, havia uma diferença entre ser parte conflito armado, que vinha ocorrendo antes desse período, e o combate ao terrorismo. “Até internacionalmente, há uma diferença entre ambos. O conflito armado, por mais que seja guerra, tem algumas regras. Já a retórica do combate ao terrorismo permite muito mais ações humanitariamente questionáveis”, aponta Natália.

O conflito interno no país, além de amplo, é muito internacionalizado. Isso estava diretamente alinhado com a política externa e sua articulação com aquela seguida pelos Estados Unidos na época: “Para além de uma mudança no governo, interna, era uma mudança na política externa do país. Por ser um conflito muito internacionalizado, as mudanças acompanham o contexto internacional”.

A princípio, o governo obteve fortes vitórias sobre as Farc e ganhou ampliação do apoio popular. Acuada, a Farc perdeu estrutura e voltou a agir como guerrilha, com ações mais agressivas mas menos precisas. A política extremamente combativa gerava um ciclo de ações cada vez mais violentas, tanto por parte do grupo armado quanto por parte do exército.

A figura presidencial, também, fundamental na política colombiana, fazia com que o combate aos grupos armados fizesse parte da relação presidencial com o povo. “Em um certo ponto, começaram a haver metas para o exército, de quantidade de guerrilheiros presos, por exemplo, bonificação por morte de guerrilheiros, e nessa época começaram a aparecer os “falsos positivos”, civis mortos vestidos como guerrilheiros para serem apresentados”. Após essa visualização maior da vitimização civil, uma parcela população começa a perceber que não haviam, de fato, novos ganhos estratégicos concretizados.

Além disso, a mudança concretiza uma junção de diferentes fatores, também internacionais.
Em 2009, com a eleição de Barack Obama, os EUA, que tinham uma postura de apoio à política governamental, acrescentam alguns questionamentos: o maior cumprimento de leis trabalhistas por parte da Colômbia, a redução dos financiamentos do Plano Colômbia, ao mesmo tempo em que patrocinaram a ampliação do conhecimento estratégico para além das suas fronteiras. Além disso, Pollachi comenta sobre interesses que já não eram tão presentes: “O narcotráfico, que era a fonte da cocaína que chegava nos Estados Unidos, passou a se deslocar parcialmente para o México e a América Central, então a motivação para financiar esse combate a um custo humanitário alto vai diminuindo. Surgem problemas mais emergentes e, literalmente, próximos, na fronteira. É uma grande soma de fatores que fazem com que essa política se tornasse menos viável”, comenta.

Com a eleição do sucessor de Uribe em 2010, Juan Manuel Santos, mesmo muito direcionado a uma manutenção desse sistema, há uma mudança de narrativa, inclusive na forma de discursar sobre e na relação com países. Se aproxima de países como Equador e Venezuela, que tinham uma relação mais próxima com as Farc e, em 2011, é reinserida a tramitação da lei de “Vítimas e Terras”.

Lei é ponto chave

A legislação abria a possibilidade de um reconhecimento das vítimas antes da finalização do processo de paz. Demonstrava um avanço para a justiça transicional. Havia uma mudança terminológica de certos âmbitos, renomeando a questão como “conflito armado” e, mesmo que indiretamente, reconhecendo o caráter político reivindicatório das Farc, algo suspenso desde 2002. Reconhece, também, vítimas do Estado, direcionando parte da responsabilidade daqueles civis que foram afetados pelas ações do governo. O que, a princípio, pode parecer apenas mudança de termos, reflete-se como um avanço para o diálogo.

Além disso, começam a ser desenvolvidas reuniões secretas mediadas pela Venezuela em La Habana, considerando um território de meio termo para possibilitar a confiança no diálogo. Após todo esse processo, em 2012 são oficialmente abertas as negociações de paz. Para Natália, a tramitação da lei foi essencial: “Isso foi bastante emblemático, tanto em relação a conseguir alterar sua narrativa, quanto sobre a manutenção do apoio no Congresso, para conseguir a aprovação. É bastante curioso ver como vão transicionando as questões”.

A conciliação

Um ponto bastante relevante a ser abordado refere-se à dualidade entre presidência e congresso. A princípio, a eleição esteve fortemente pautada na manutenção do combate e, posteriormente, ocorre uma mudança nessa narrativa. Apesar da centralidade da figura presidencial, a articulação com o congresso e o apoio majoritário foram essenciais para essa transição. Durante seu mandato, Uribe tinha amplo apoio no órgão e, quando eleito, Santos também possuía.  Quando apresenta a lei, seu partido racha. Uma parte o acompanhou e outra tornou-se dissidência, inclusive o próprio Uribe.

“Cheguei a conversar com senadores e deputados colombianos. Os da oposição dizem que consideraram uma traição ao governo anterior. Os que o acompanharam apresentaram distintas percepções, uma dizia que alguns de fato aderiram à sua narrativa de que o combate estava esgotado, ou seja, parte deles realmente acreditava nessa percepção distinta. Muito do diálogo foi feito voto a voto por parlamentares. A outra, que o legislativo colombiano era “vendido” e acompanhava o executivo”.

Impacto do conflito

Uma coisa importante a se entender sobre o processo colombiano, destaca Natália, é em relação à responsabilização de ambos lados: “Não existe lado bom ou lado ruim. Às vezes há uma romantização de um lado ou do outro, mas na realidade ambos cometeram crimes graves”. Além disso, a população colombiana tem a questão do conflito muito marcada em sua história: “A cada três pessoas, uma tem alguma história de vitimização, de alguma conexão com o conflito, então é algo muito enraizado e que foi difícil da população bancar”, aponta Natália.

A visão popular nem sempre acompanhou o diálogo com maioria favorável, alguns consideravam a possibilidade de anistias, ainda que parciais e complementadas com mecanismos de reparação, como a não culpabilização. Em torno da campanha do plebiscito de 2016, observou-se também o peso da desinformação: “É algo um pouco inicial nesse processo de fake news que vivemos hoje, muitos boatos foram espalhados a respeito das condições do acordo, e isso dificultou a percepção da opinião pública”, destacou.

A narrativa em torno do conflito e a ascensão da Colômbia internacionalmente demonstraram um papel importante na mudança. Tanto em relação a pautar o país como aquele que estaria superando suas crises e ascendendo socialmente e economicamente, também na noção de que o conflito seria inviável pelo seu custo financeiro e humanitário. Nesse sentido, há uma mudança na percepção geral sobre o país: “A mudança no discurso foi forte, a ideia de tornar a Colômbia um país desenvolvido, de que estaria superando suas mazelas”. O boom no preço das commodities e a ascensão financeira também ajudaram a pautar uma nova visão para o futuro do país, em contraponto a uma visão antiga de falência.

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