Pelas ruas da Luz: a história da Cracolândia em três momentos

Região que abriga consumo de drogas já foi polo de produção cinematográfica

A "Boca do Lixo", como era conhecido o trecho entre a Rua do Triunfo e a Rua Vitória, era frequentada por artistas famosos

Por André Romani, Daniel Medina, Jade Rezende, Maria Paula Andrade, Matheus Souza e Vinícius Lucena,

“Aqui todo o lixo era reunido e ia para algum lixão, através dos trens”. A região conhecida como Boca do Lixo, localizada no bairro da Luz – nos arredores da Rua do Triunfo, centro da capital paulista – já passou por diversas transições até se tornar, desde os anos 1990, a Cracolândia, conhecida popularmente por ser reduto de usuários de drogas, tráfico e prostituição. Quem conhece a região hoje, mas desconhece sua história, não imagina que ela já foi um polo de grande destaque do cinema brasileiro, desvinculado dos incentivos governamentais.

Antes de ganhar essa configuração atual, no início do século 20, a região começou a se desenvolver pela proximidade tanto da estação ferroviária, quanto da antiga estação rodoviária. A partir das décadas de 1920 e 1930, já era caracterizada pelos ares de indústria cinematográfica. Foi nesse período em que empresas como a Paramount, Fox e Metro ali se estabeleceram pela facilidade de receber e despachar os aparelhos de filmagens e cópias dos filmes. Com o tempo, essas companhias começaram a atrair também distribuidoras, fábricas de equipamentos especializados, serviços de manutenção técnica e outras empresas do ramo.

Paralelo a essa cena que aflorava, durante o período do Estado Novo (1937-1945) e de Adhemar de Barros, interventor do Estado de São Paulo, o bairro do Bom Retiro foi escolhido como destino da prostituição que se espalhava pela região central, criando um confinamento de prostitutas na cidade. O confinamento não era oficial, mas um “acordo de cavalheiros”. A partir dos anos 50, muitas delas que trabalhavam em bordéis da região foram expulsas por decreto do governador da época, Lucas Nogueira Garcez (1951-1955), migrando para a região da Estação da Luz.

Além da presença literal de lixo no local, seu nome popular foi difundido de forma pejorativa para a região também pela concentração da prostituição barata da cidade, tornando-se a maior a partir de 1954. É um local que sofreu ínfimas transformações com o passar dos anos e sempre esteve muito relacionada à regionalização da população, atrelado à forma como o poder público dialogava com as pessoas que lá habitavam e as atividades que ocorriam.

A higienização da região

A interação entre a população e o governo esteve muito pautada de acordo com a alocação e redistribuição das atividades da região, processo que viria a influenciar a produção cinematográfica e sua interação com essas camadas sociais marginalizadas. Para Luzia Margareth Rago, docente no Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a presença de prostituição na região esteve muito pautada pela concepção do poder público a respeito da atividade em si.

A pesquisadora comenta sobre duas políticas criadas na Europa, no início do século 19, para lidar com a prostituição, que fortemente influenciaram a dinâmica na cidade de São Paulo. Trata-se do abolicionismo, originário da Inglaterra, e do regulamentarismo, francês: “São duas políticas muito contraditórias, porque o regulamentarismo supunha que o Estado deveria interferir, definindo locais específicos, horário de funcionamento das casas, circulação das mulheres. Enquanto o abolicionismo pautava-se na ideia de que o Estado não podia interferir, porque estaria agindo como cafetão”.

Margareth remete à origem dessas políticas na influência do Cristianismo no imaginário popular, na definição de valores, desde o século 4, relacionado à concepção do pecado original, base da narrativa cristã a respeito da criação da humanidade: “Os médicos e juristas do século 19 vão seguir preceitos daquela época, em que Santo Agostinho dizia que a prostituição seria um mal necessário e não iria acabar”. Associado à percepção cristã do corpo como pecado, enquanto isso fosse inerente ao ser humano, não haveria forma de acabar com a prática.

O regulamentarismo francês tem origem na expansão das cidades do século 19, com a Revolução Industrial. “Ali iniciam-se pensamentos sobre a higienização da cidade, e a prostituição entra nisso, há um investimento para higienizar os bairros vistos como podres na cidade, moralmente e fisicamente”. Assim, o governo teria que interferir e definir locais para a prostituição, garantindo inspeção e vistoria médica. Já os abolicionistas, na Inglaterra, algumas décadas depois, consideram que o Estado não poderia reconhecer a prostituição ou interferir na vida íntima das pessoas, muito associado à ideologia liberal.

No Brasil, sempre imperou uma política associada ao abolicionismo: “Não era algo expressamente definido, mas nunca teve uma regulamentação, não havia uma preocupação definida de regularizar a prostituição. Era adaptado à realidade do Brasil”, aponta Rago. Porém, durante o período de Adhemar de Barros, opta-se pelo confinamento das prostitutas entre as ruas Aimorés, Ribeiro e Lima e Prof. Cesare Lombroso.

Após 1954, o desconfinamento ocorre de forma bastante drástica: “Houve tumulto, repressão, as prostitutas saíram às ruas em passeatas. Foi um despejo sem nenhuma outra alternativa, semelhante ao que é feito hoje”, destaca a professora.  

Houve opiniões contrárias e favoráveis a essa política: “Alguns consideravam que com o confinamento haveria controle sanitário, e que com o desconfinamento perderiam não só o local, mas a regulamentação sanitarista. Mas a questão é que com essa medida, as prostitutas ficaram nas ruas, daí nasce o trottoir, em que as mulheres ficam andando nas calçadas e se espalham por diversos bairros”. A transferência populacional e o despejo das prostitutas teriam um grande impacto na configuração posterior da Boca do Lixo, sendo elas, inclusive, atuantes no processo de produção artística.

O cinema na Boca do povo

A partir dos anos 50 foram as produtoras que começaram a aparecer no local, tomando as três quadras da rua do Triunfo. Isso porque, legalmente, os cinemas do país teriam que começar a exibir mais filmes brasileiros. “Eles começaram a produzir, na Boca do Lixo, filmes baratos, eróticos para ocupar essa reserva de mercado que o governo garantia”, explica Carlos Augusto Calil, professor de História do Audiovisual Brasileiro no Departamento de Cinema, Rádio e TV da USP.

Quem caminha hoje pela região mal imagina que poucas décadas atrás ela era marco de uma intensa efervescência cultural, com a presença de hotéis, produtoras e distribuidoras. “Aqui em São Paulo era muito folclórico, porque você encontrava todos no bar Soberano. Ali se faziam negócios, montavam produções, parceiras eram definidas”, relata Calil. Outro aspecto marcante na região era a presença dos prostíbulos. A existência de ambos os mundos no mesmo local fazia com que eles se entrelaçassem em muitos momentos, sendo que muitas prostitutas chegaram a participar dos filmes.

Prédio azul abrigava o antigo Bar Soberano. Foto: Matheus Souza

Duas características importantes dos filmes da Boca do Lixo foram seu caráter popular e os baixos custos. Segundo o professor, “o espectador desse cinema era homem, de pequena classe média no máximo, por exemplo”. Outra marca dessas produções eram os gêneros, pouco explorados no país, como faroestes, kung-fus, dramas históricos e a famosa pornochanchada, surgida na região.

A escolha por esse tipo de filme partia tanto do custo quanto da popularidade. A relação salas cheias x filmes baratos dava imenso lucro e, assim, a produção era intensa. Tudo isso com verba dos próprios produtores, que também se ajudavam emprestando dinheiro uns para os outros. As histórias ficavam prontas à toque de caixa e a burocracia era mínima. Como explica Calil, para fechar o contrato de uma produção nova era necessário apenas o título, que sempre fazia referência às mulheres de maneira negativa e muitas vezes sequer tinha conexão com o roteiro. “A história não tinha muita importância. O título era muito apelativo, ele que atraia o espectador [majoritariamente masculino]”. Alguns exemplos são Mulher Objeto (Sílvio de Abreu, 1981), A Ilha dos Prazeres Proibidos (Carlos Reichenbach, 1979) e Ninfas Diabólicas (John Doo, 1978).

Do faroeste à pornochanchada

A misoginia foi constante nas produções e a presença do corpo feminino era obrigatória em tela. Os faroestes produzidos na época, conhecidos como faroestes feijoada, também reproduziam vários estereótipos femininos. A inspiração vinha dos faroestes “spaghetti”, como eram conhecidas as produções italianas do gênero, que já contavam com certo apelo sexual. No Brasil, porém, essa característica foi elevada ainda mais. Segundo Paulo Faria, dono da frase que inicia este texto e diretor da Companhia de Teatro Pessoal do Faroeste, sediada na região, os filmes revelavam um fetiche do público nacional por cenas de estupro. “Em vez da cena de apelo, tinha o estupro. Isso agradou o público, e foi crescendo até a pornochanchada”, conta.  

Rua do Triunfo, onde estavam localizadas produtoras e distribuidoras de cinema. Foto: Matheus Souza

Após os faroestes surgiu o gênero mais conhecido entre os explorados na região e, outra vez, a influência vinha dos italianos. Em meados da década de 60 chegaram ao Brasil as comédias eróticas italianas: “Elas tinham um público mais amplo e sofisticado, porque eram de grandes diretores, atrizes e atores. Não eram produções vulgares. Como o gosto da classe média de São Paulo era muito parecido com o italiano, esses filmes entraram aqui com muita força”, explica Calil.

A partir destas produções, surgiu na Boca do Lixo uma imitação à brasileira do gênero. Esses filmes ficaram conhecidos como pornochanchada, termo que para o professor não retrata fielmente o gênero. “É um equívoco, porque não era pornô, já que não mostrava sexo explícito; e nem chanchada, que era marcada pelo aspecto musical. Não tinha musical na pornochanchada”.

Apesar de ser marca obrigatória em todos os filmes, o conteúdo erótico era bem controlado pela censura da ditadura militar. “Hoje, a novela das oito tem um apelo muito maior que a pornochanchada feita aqui”, opina Paulo. “Não podia, por exemplo, ter dois peitos de uma vez só de frente. Tinham várias regras”.

Com o tempo, o modelo foi se esgotando. “Os filmes começaram a se repetir muito e o público a não se interessar mais”, explica Calil. De acordo com ele, um mais “ousado” chamado Coisas Eróticas (Rafaelle Rossi e Laente Calicchio, 1981), incluiu cenas de sexo explícito. A partir de então, tudo mudou. “O problema do filme de sexo explícito é que eles eram iguais aos estrangeiros, não havia motivo para produzir no Brasil”. De acordo com ele, fazer um longa desse tipo era mais caro do que importá-los.

Com isso, os donos de cinemas começaram a adquirir pornôs estrangeiros, principalmente dos EUA. Sem necessidade de ficar próximas aos trens, já que existiam outras alternativas, as distribuidoras também se foram. Muitos dos artistas e produtores faliram e tantos outros ficaram desempregados. Mais tarde, com Fernando Collor na presidência (1990-1992), aconteceu a extinção da Embrafilme, principal distribuidora do país na época. Com isso, todo o cinema brasileiro foi impactado, e a Boca do Lixo, esquecida.

Como chegamos até aqui

Junto à decadência do movimento do Cinema Marginal, a região da Boca também entrou em declínio. Nesse momento, o grande público começa a rejeitar o cinema produzido na área e, então, a região decai e problemas do centro de São Paulo – como furtos e circulação de drogas – começam a aparecer acentuadamente na Boca.

Entretanto, essas questões de violência urbana que começaram a aflorar na época foram amplificadas por medidas tomadas décadas antes, nos governos dos prefeitos Prestes Maia e Faria Lima. No primeiro governo de Maia, entre 1938 e 1945 – quando a região da Boca do Lixo ainda tinha uma forte atividade cinematográfica –, houve uma tentativa de transformar o bairro em concentração de comércio de luxo. Com isso, o então prefeito alargou as avenidas Duque de Caxias e Ipiranga. Faria Lima, em meados da década de 60, fez o mesmo com a avenida Rio Branco.

 

Avenida Ipiranga na década de 40. Imagem: FFLCH-USP/Reprodução

Segundo Herta Franco, historiadora com doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela USP, ambos políticos queriam restringir o bairro com essas medidas, mas acabaram fazendo o contrário. “Ao invés de eliminar o bairro, o que eles fizeram foi isolar aquela região do resto da cidade com barreiras físicas das avenidas”, explica. Formado esse contraste – com as ruas estreitas no miolo do bairro e as grandes avenidas em volta –, criou-se, ali, um ambiente enclausurado dentro da cidade, com pobreza, prostituição e muita polícia.

A historiadora acredita que essas medidas giram em torno de um estigma de submundo que existe há cerca de 100 anos. Segundo Herta, no final do século 19 criou-se tal impressão do bairro devido aos seus cortiços, o que se estendeu ao longo do século 20. “Bas-fond” ‒ em francês, o submundo ‒ é visto como a camada degradada da sociedade, e toda grande cidade brasileira teve o seu ao longo destes dois séculos.

As medidas tomadas por políticos nesses bairros são, geralmente, para tentar apagá-los, ignorando problemas estruturais que existem por lá. Na década de 60 em São Paulo, por exemplo – como é mostrado no filme O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) –, nota-se uma urbanização intensa na cidade, mas sem aplicação de políticas públicas de moradia e educação nessas áreas. “Por que o submundo existe? Porque falta política pública. Por que aquelas pessoas estão lá por dependência química? Por falta de amparo do governo e, geralmente, por problemas familiares causados pela falta de estrutura pública para as pessoas viverem”, explica Herta Franco.

Sobre a região hoje em dia, que passou a ser chamada de Cracolândia, a historiadora diz que não deixou de ser um polo cultural, mas agora tem outro viés: “Todos os museus que estão ali, a sala de concerto e tal, é ainda esse teor da cultura. Só que é um viés elitizado, que não atende a população do entorno”. Segundo ela, não há necessidade de pautar um programa de requalificação urbana só pela cultura. “Você tem uma série de setores ali, sem esquecer que é um bairro de fortíssima tradição comercial. Existem várias camadas de história ligadas a atividades comerciais. Essas coisas já dariam uma outra feição para o bairro”. Com isso, Herta quer dizer que políticas públicas que envolvam criação de mão-de-obra e geração de renda é que fariam uma grande diferença para a região – e não a produção de cultura erudita e elitizada.

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