É muito comum ouvir que aparelhos eletrônicos, principalmente os mais atuais, possuem sua vida útil reduzida por conta de “ajustes” feitos propositalmente nas fábricas. Pensando em como isso acontece no Brasil, Lia Assumpção, designer e mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU USP), retratou o tema na sua dissertação intitulada Obsolescência programada, práticas de consumo e design: uma sondagem sobre bens de consumo. O objetivo era identificar e reunir dados sobre a obsolescência e seu impacto no país.
A chamada obsolescência programada é o método que inutiliza um produto após um certo tempo, induzindo a compra de um novo exemplar. Durante a pesquisa, Lia identificou três tipos de obsolescência recorrentes no Brasil: artificial, psicológica e tecnológica. A obsolescência artificial é aquela que obriga a aquisição de um novo objeto (em geral, eletrônicos) porque o anterior já não tem conserto. A psicológica acontece quando uma nova versão – atualizada – do mesmo produto, atrai o consumidor para a troca, enquanto a tecnológica tem relação com a incapacidade de instalar softwares ou sistemas operacionais em um aparelho em específico.
Esse não é um fenômeno natural. Lia explica que o conceito foi cunhado no século passado, nos Estados Unidos, quando a lógica de mercado precisava se reinventar em meio a crise enfrentada pelo país, depois de 1929. Para acelerar a venda de seus carros, Alfred Sloan, então presidente da General Motors, começou a modificar pequenas partes sem função dos automóveis para vender a “atualização” como uma nova aquisição, dando início à prática realizada até hoje. “A conclusão da minha dissertação é que isso é uma lógica que foi inventada, e que hoje a gente se habituou e vive dentro dela”, afirmou a design.
Na pesquisa foi constatado que a maior parte das pessoas entrevistadas ainda se utilizam da situação clássica para a troca de seus aparelhos: a quebra, somando 59% do total. Em segundo lugar, está a troca por um modelo que atendesse melhor suas necessidades, com 28%, e a substituição por falta de atualização tecnológica soma 12%. Apenas 1% dos entrevistados admitiram comprar um novo lançamento. Dos itens citados, o mais frequente é celular.
Assim, novos incrementos foram incorporados nas mercadorias para garantir que as pessoas quisessem adquirir um novo modelo de um produto que já possuíam. “Fica muito claro que isso foi uma estratégia para vender mais. Na época fazia todo sentido porque eles queriam salvar a economia americana em crise, então inventaram a obsolescência até pelo nacionalismo”.
Lixo eletrônico
Um problema resultante desse processo, e que está intimamente ligado ao consumo de novos aparelhos, é o lixo eletrônico. A troca dos modelos tem como efeito o descarte dos dispositivos antigos. Hoje, a maioria das fábricas ainda não tem políticas bem estabelecidas para aceitar de volta os exemplares usados, fazendo-os parar no lixo.
O Brasil é líder na produção de lixo eletrônico na América Latina e sétimo no mundo, segundo dados da Global e-Waste Monitor 2017. Em pesquisas da ONU, o país aparece com a marca de 1,5 mil toneladas de lixo eletrônico produzidos por ano. O ainda dificultado descarte desse material toma vias de desafio ambiental pelas empresas de tecnologia.
Dentro do design, o mesmo dilema acontece. A indagação é, então, em como mudar o cenário onde a obsolescência contribui para a produção exagerada desse tipo de lixo. “O design é sobre como você pode mudar essa lógica de projetar. E isso vale para tudo na verdade: quando você desenha um móvel que gera pouco resíduo, você faz um livro que gera pouco resíduo. É para pensar”, alertou Lia.
Sinais de melhora
Lia assinala que as fábricas estão começando a tomar iniciativas para evitar esse acúmulo, que é consequente das três formas de obsolescência encontradas. Existe uma regulamentação (Lei nº 12.305/10) que determina que as empresas minimizem a produção de resíduos e criem iniciativas para recolhimento de maneira adequada dos produtos pós-consumo.
Apesar de não ser completamente espontânea, a medida já colabora para que a produção do lixo eletrônico seja menor. Lia destaca que nem todas as fábricas participam do movimento por vontade própria, mas a obrigação sob a lei que determina a medida já é um grande avanço para a mudança que pode ocorrer no futuro.
A dinâmica do sharing (compartilhamento), que recentemente tem ganhado visibilidade, também é um fator que obriga o mercado a pensar de outra forma nos seus produtos. “Hoje, estamos em uma época de compartilhar, e quando você projeta um produto para ser alugado, é muito diferente de quando projeta para ser vendido, justamente porque tem que pensar na durabilidade e, eventualmente, em poder fazer atualizações sem precisar trocar o produto todo”.
O que vem mudando também é a forma como o design evolui em relação a esse problema. A possibilidade de projetar digitalmente e utilizar a tecnologia em prol do menor desperdício possível é um dos aliados, de acordo com Lia. “Acho que com a tecnologia digital é mais fácil de não imprimir coisas, ter soluções que são digitais. Pelo contexto da sustentabilidade, a ideia é que o design pense nesse ciclo. Não é só por uma carinha bonita. A gente pode até por uma carinha bonita, mas a função não é essa”.
Para a pesquisadora, esse é o caminho que deve ser percorrido em detrimento da obsolescência programada. “Acho que a gente tá entrando numa época de serviços, então vamos sair um pouco dessa época do produto onde todo mundo tem o seu, para todo mundo alugar, compartilhar. Isso pode mudar essa lógica do desenho das coisas, de ter uma lógica mais pensada pra esse ciclo completo”.
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