Estudo classifica a Cracolândia como local de resistência dos marginalizados

Em dissertação de mestrado, antropóloga relatou o cotidiano dos usuários e o seu relacionamento com a região

Muro da Cracolândia que sintetizaria, de acordo com a antropóloga Roberta Costa, a dissertação /Foto: Roberta Costa

Em janeiro de 2012, uma violenta ação policial foi efetuada com objetivo de pôr fim à Cracolândia. Apelidada de “dor e sofrimento”, a operação consistia na ocupação da região por policiais e na obstrução da chegada de mais drogas. A intenção era provocar a abstinência dos usuários para que eles deixassem o local. Ela, no entanto, obteve um resultado inesperado pelas autoridades: foi a primeira vez em que os coletivos sociais conseguiram construir uma resposta organizada. Por sugestão de Paulinho, na época usuário de crack, foi organizado um “churrascão” em que foram convidados pessoas da própria Cracolândia e vários ativistas. Essa manifestação, diferente daquelas que costumam aparecer na televisão, se mostrou um sucesso. Centenas de pessoas estavam reunidas no espaço onde era proibido permanecer.

A antropóloga Roberta Costa, em sua dissertação de mestrado do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) intitulada Mil Fitas na Cracolândia: Amanhã é Domingo e a Craco Resiste, aborda a vivência dos usuários e os movimentos de resistência do espaço. Seu primeiro contato aconteceu por meio da organização Luz Livre, inserida no contexto da ação policial “dor e sofrimento”. Para ela, aquele episódio foi de extrema importância. “O proceder do poder público era não deixar as pessoas se reunirem. Os usuários não podiam ficar juntos, senão a polícia atacava. No churrascão, foram chamadas pessoas de fora, brancas, de uma classe social mais elevada. Ninguém tirou a gente de lá. Ficou claro que era uma violência étnica, um racismo. Era proibido permanecer ali se você tivesse cara de usuário, de pobre, não tivesse condições”.

Churrascão da gente diferenciada. Foto: Keren Chernizon/UOL

A vitória obtida naquele dia com a manifestação apenas aconteceu por determinado motivo: o protagonismo dos usuários. “O Paulinho criticou a nossa ideia de fazer um protesto clássico, de sair da Praça da Sé em marcha. Ele disse que ninguém iria sair da Cracolândia para ir até lá”. O agora ex-usuário propôs que se fizesse um churrasco lá mesmo, com música e festa. Tudo foi organizado em conjunto com os usuários. “Não foi uma coisa feita para eles, e sim com eles”.

É esse também o caso da Craco Resiste, movimento social que se opõe à violência institucional na Cracolândia. “Só é efetivo porque eles são os protagonistas”. “A criação da organização está intimamente ligada ao mestrado”, conta Roberta. Após o primeiro ano de curso, o computador no qual constava todo o material coletado quebrou e ela decidiu, de maneira a retomar a sua pesquisa, que deveria passar uma semana ininterruptamente na Cracolândia, vivenciando o cotidiano do local.

“Em uma reunião feita com os usuários e trabalhadores da região para pensarmos o conteúdo para o mestrado, nós debatemos como a Cracolândia deveria resistir. Pensamos nos vários modos de ela não precisar existir: resolvendo a questão de moradia, da distribuição de renda e do direito a ter condições básicas de vida. Se todas essas coisas fossem resolvidas, ela não precisaria existir. Mas como a gente sabe que essas coisas não vão se resolver agora, a Cracolândia precisa resistir. E então a gente decidiu fazer esse movimento. Não dá pra falar que a Craco Resiste só existe por causa desse mestrado, mas foi no processo dele que ela foi pensada e se deflagrou. De alguma forma, o mestrado está relacionado com a constituição desse movimento.”

Roda de conversa / Foto: Alice Vergueiro

A participação dos usuários foi fundamental para o desenvolvimento da dissertação. Eles, inclusive, foram responsáveis por decidir o título. “Tanto Mil Fitas quanto Amanhã é Domingo são sugestões de título de usuários da Cracolândia”. Esses dois termos revelam características importantes do local. O primeiro se refere aos múltiplos acontecimentos que lá ocorrem. “É tudo bastante dinâmico. Acontecem muitas coisas ao mesmo tempo. Algumas horas geram páginas e páginas de debate e reflexões. De um dia para o outro, as relações mudam muito”. Já Amanhã é Domingo fala sobre a temporalidade da Cracolândia. “É uma questão muito diferente do tempo do relógio, lá ele funciona de outro jeito”. No território, há uma vivência sem preocupação com o dia seguinte e, assim, alguns comentam que lá o amanhã é sempre domingo.  

Outra questão importante abordada pela pesquisa é o modo errôneo como a Cracolândia é vista pela sociedade. A imagem que vem em mente quando alguém pensa na região é a de um território sofrido, sujo e triste. De acordo com Roberta, lá também é um local de encontro, principalmente de pessoas de estrato social mais baixo. “Mesmo antes da existência do crack, já era um lugar de diversão de pessoas de baixa renda. Era a ‘boca do lixo’. Nós vamos pra lá com essa imagem tão feia na cabeça e não pensamos na função daquele lugar como de vida e de resistência”. Ela então conta a fala de um menino morador da região que a marcou: “Tia, você acha que estou triste aqui, mas não estou. Em qualquer outro lugar da cidade, as pessoas me olham feio ou passam por mim e não me olham. Aqui todo mundo me dá bom dia, eu tenho o que comer e quando não tenho, as pessoas dividem comigo. Não estou achando ruim, não quero ir embora”, disse ele.

Festa Junina na Craco (2017)/ Foto: Alice Vergueiro

Segundo “Rica” um trabalhador da região, conta Roberta, a Cracolândia é o “quartinho de bagunça” da cidade. Tudo aquilo que não cabia ou não se encaixava em outros lugares de São Paulo vai para o território. “Tem muito deficiente físico, idoso e profissional do sexo que já não é tão bonita quanto era antes e não consegue mais fazer programa nos mesmos lugares de antes. De alguma forma é um lugar que te acolhe. É um lugar que a gente chama de ‘pretominância’, de maioria negra”. A Cracolândia acaba por se tornar o local dos rejeitados pela sociedade excludente.

“Não deixa de ser uma região muito violenta. Mas quando estamos lá de forma respeitosa é possível encontrar gente muito carinhosa, que gosta de abraçar, conhecer, cumprimentar e ser cumprimentado como qualquer outra pessoa da cidade. É uma relação muito bonita. Eu tive um filho recentemente e não vou lá há alguns meses. Mas as pessoas continuam me ligando, vêm me visitar para conhecer meu filho. São vínculos que transcenderam o trabalho de campo do mestrado e viraram vínculos de amizade verdadeiros, de muito carinho”, diz Roberta.

Esse respeito com os usuários é a questão central de seu texto.  “Eu cito os usuários do mesmo jeito que cito os acadêmicos, com a mesma formatação porque eles são os especialistas. Quem entende aquele lugar são as pessoas que estão lá. Não quem está de fora”. E é por esse motivo que o mestrado foi, na verdade, uma produção coletiva. “Isso também se reverberou na defesa do mestrado. Foram para a defesa cerca de 15 usuários. Para alguém que é usuário de crack, sair da Cracolândia é muito difícil, porque lá é o lugar de segurança, onde não há preconceito. Mas eles foram pra defesa e internalizaram o fato de eles serem autores do mestrado. Durante a minha fala inicial e a dos professores, eles interrompiam. Respondiam perguntas que a banca fazia para mim. Isso foi uma das coisas mais bonitas. O mestrado era deles”.

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