A teoria do filósofo do Direito Joseph Raz, uma das principais referências no assunto hoje no mundo, possui equívocos. O pesquisador Daniel Murata, em sua dissertação de mestrado “Em Meio à Tempestade: Valoração e Descrição na Teoria do Direito”, defendida em julho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e orientada por Ronaldo Porto Macedo Jr, se dedica a apontá-los.
Para entender o que Murata reivindica em sua dissertação, no entanto, é preciso explicar um pouco sobre o Positivismo na Filosofia do Direito. A vertente consiste, grosso modo, na crença de que a definição do Direito é dada necessariamente por fatos sociais, ou seja, separa-se de maneira clara o Direito como ele é daquilo que ele deveria moralmente ser. O positivismo usualmente é oposto às teorias do Direito Natural, que buscam fundamentar o direito na racionalidade, na razão prática ou em bens básicos humanos, por exemplo.
Joseph Raz nasceu em 1939. Sob a orientação de H. L. A. Hart, principal nome do positivismo jurídico da época, obteve um doutorado em filosofia em Oxford. Lá foi professor de Filosofia do Direito de 1985 a 2006 e professor pesquisador de 2006 a 2009.
Segundo Daniel Murata, a escolha de Joseph Raz para objeto de sua dissertação se fundamenta em três principais motivos. O primeiro e segundo motivos se relacionam à influência raziana: “Raz é o filósofo do Direito mais influente da língua inglesa hoje, além do fato de que alguns dos maiores filósofos do Direito atuais foram seus orientandos”, diz Murata. O terceiro motivo se refere à clareza metodológica de sua teoria: Raz é um dos poucos autores da área que enfrentou as questões relativas ao método no Direito.
Joseph Raz é adepto do positivismo exclusivista. Acredita que elementos morais não interferem na definição do conceito de Direito. Seu mentor, Hart, foi um inclusivista, ou seja, admite que a influência da moral seja possível, contingencialmente. A pergunta chave que visa a orientar a dissertação de Murata é: “julgamentos ou avaliações morais influenciam ou não na definição do que é o Direito?”
A Tese da Preempção
O desenvolvimento do argumento de Murata se apoia nas principais premissas da teoria raziana. A primeira delas é a chamada “Tese da Preempção”. Nela, Raz afirma que a autoridade do Direito funciona por meio de razões exclusionárias, ou seja, razões que impedem o recurso a outras razões para a tomada de decisões. “Se um superior, por exemplo”, diz Murata, “pede para um soldado que ele se aproprie de um carro, ele não vai pensar se a ordem foi boa ou má. Ele obedece, porque é uma ordem. O comando é autoritativo. Na tese de Raz, grosso modo, as diretivas do Direito conteriam razões de segunda ordem, atuando sobre as demais razões de primeira ordem”.
No entanto, as razões exclusionárias necessitam de um escopo para que façam sentido e não sejam meramente razões absolutas a ser obedecidas a qualquer custo e em qualquer ocasião. Murata ilustra essa necessidade a partir de uma situação hipotética: uma mãe pede a seu filho que não abra a porta para estranhos. No entanto, o filho, enquanto prepara algo na cozinha, bota fogo na casa. Os bombeiros são acionados. Se um bombeiro, quando chega, pede para que o filho abra a porta, ele abre. A mãe, quando chega em casa, não pensa em momento algum que o filho a desobedeceu — nem tudo é excluído pelas razões exclusionárias. “Se um visitante desconhecido chegar, um vendedor, um pedreiro, um técnico de internet, o filho não abre a porta. Ele obedece, pois isso é abrangido pelo escopo da razão exclusionária. Mas o bombeiro, não. Um médico, se ele estiver passando mal, também não”, diz.
Um problema de Joseph Raz é não ter definido o escopo das razões exclusionárias em sua teoria do Direito. Por isso, Raz oscila entre inconsistência, por um lado, e defesa cega da autoridade por outro. Para que uma regra seja legítima, é preciso verificar se ela é adequada e se faz sentido em determinado contexto. Isso demanda um julgamento moral — justamente o que Raz busca excluir do Direito enquanto questão conceitual. “É possível ilustrar o caso com um exemplo caricato. Imagina a seguinte regra do Direito: ‘pessoas suspeitas devem ser paradas pela polícia de noite’. Mas curiosamente, os policiais param apenas pessoas com certas características. Você vai imaginar se isso é uma boa ou uma má aplicação da regra. O que é uma pessoa suspeita? Começa a haver uma margem de ambiguidade aí. É preciso deliberar sobre”.
O problema seria levado, então, a um nível superior. O principal argumento de Murata, baseado principalmente em Heidi Hurd e Chaim Gans, em sua crítica à Tese da Preempção é o de que não se consegue nunca excluir da aplicação do Direito julgamentos e considerações éticos, morais e políticos. Pois a aplicação da regra em determinados casos demanda um julgamento sobre a pertinência da própria regra. “Evidentemente isso não acontece sempre” diz o pesquisador, “sequer acontece na maioria dos casos. Mas acontece em casos importantes, e potencialmente em quaisquer casos se esmiuçados”.
Murata cita, para exemplificar o que pode ser esse julgamento na prática, a decisão do STF em permitir o casamento homoafetivo. “Até 2011, a união estável reconhecida no Direito brasileiro era entre ‘homem e mulher’. A partir de uma nova interpretação das mesmas regras pelo STF, passou-se a entender que era possível a união entre pessoas de mesmo sexo. Claramente há aqui uma aplicação do direito baseada em uma deliberação sobre princípios políticos e morais. Nós temos o tempo todo fatores morais influindo na nossa percepção sobre o que é o Direito”.
Murata ainda afirma que Raz, ao tentar dar conta das sutilezas do Direito, acaba encontrando problemas para sua teoria: “Justamente a sua tentativa de capturar as nuances, os detalhes da realidade, acaba fazendo com que ele caia em contradições. Por tentar ser complexo demais, o castelo desaba como um todo”.
A Teoria da Autoridade
A outra premissa que Daniel Murata analisa em sua dissertação é a chamada “Teoria da Autoridade” de Joseph Raz. A teoria discorre sobre o que seria uma autoridade legítima. “Para Raz”, diz Murata, “teria o direito de governar a autoridade que fosse mais capaz, sábia ou competente do que os cidadãos comuns para saber o que é o correto a se fazer”. Para que a análise fosse feita a partir de uma reconstrução mais fiel possível à teoria raziana, Murata deixa em suspenso as falhas apontadas na Tese da Preempção, já citadas no bloco anterior.
Os problemas que o pesquisador aponta estão divididos em duas frentes. A primeira frente se dedica à chamada “Tese da Autoridade como Serviço”, com críticas inspiradas em autores como Margaret Martin e Noam Gur. Em sua tese da autoridade, Raz afirma que a autoridade presta um serviço ao cidadão ao passo que o auxilia no apontamento do certo a ser feito. O foco de Murata, dessa vez, é na incompatibilidade entre isso e do argumento da preempção: “Para saber se a autoridade é legítima, segundo Raz, eu preciso ver se ela é mais apta do que eu. Para isso, é preciso um julgamento moral. Simultaneamente, ele afirma que a diretiva da autoridade funciona excluindo deliberações morais. Existe uma inconsistência entre ambas as propostas”.
A segunda frente se dedica ao apelo dos argumentos de Raz. Murata afirma que mesmo se a teoria de Raz fosse coerente, disso não decorreria que ela seja a mais adequada. Raz comete um non sequitur — termo latino que significa “não se segue”, usado para casos em que há falta de conexão entre premissa e conclusão. “Eu apresento, em caráter hipotético, duas teorias da autoridade que rivalizam a tese raziana: a de Jeremy Waldron, que se baseia em procedimentos democráticos, ou seja, afirma que tem autoridade aquilo que é democraticamente endossado, e a teoria de Ronald Dworkin, que diz que a autoridade mais legítima advém da construção mais coerente dos valores de uma comunidade”, comenta Murata. “O ponto básico é que as outras duas teorias são tão convincentes quanto a de Raz, de modo que é necessário produzir mais argumentos para se defender qualquer uma dessas teorias como a melhor ou mais adequada explicação da autoridade legítima”.
Os vícios filosóficos de Raz
A última parte da dissertação de Murata é também a mais complexa. Ela se dedica a apontar o que Joseph Raz entende como a abordagem conceitual adequada, o conceito e a definição do Direito. “A meu ver”, diz o pesquisador, “a teoria do Direito positivista em geral e o Raz em especial são comprometidos com duas características que se tornam vícios filosóficos: o essencialismo e o arquimedianismo.” Nos argumentos que se seguem, Murata se baseia principalmente nos trabalhos de Ronald Dworkin, Hillary Nye e Ronaldo Macedo e, de modo indireto, em Wittgenstein.
O essencialismo seria o hábito de buscar a essência última das coisas através de investigação filosófica. O argumento de Murata é que o essencialismo gera uma má descrição da forma como os conceitos jurídicos são empregados. Para ele, não há um consenso sobre o que é o Direito. Chama-se de Direito coisas tão distintas quanto “Direito Internacional” e “Direito Aborígene”, mas essas coisas não compartilham uma essência unificadora. Murata não acredita que haja uma essência do Direito que possa ser representada da mesma forma que a essência de um ângulo reto ou da gravidade, por exemplo, podem.
“Essa ausência de uma essência não deve nos preocupar”, afirma. “Casos paradigmáticos, para usar o termo de Dworkin, nos convidam a perguntar o que é o Direito o tempo todo. Apesar disso, o conceito de Direito e seus conceitos correlatos são utilizados no dia a dia sem maiores problemas. Em todo caso, mesmo que houvesse uma essência do Direito, como eu saberia qual seria ela? Como posso dizer que conheço a natureza última de algo? Ironicamente, se houver uma essência no Direito, deve ser a de que se trata de um conceito sobre o qual há divergências profundas e constantes”.
O arquimedianismo seria a crença na possibilidade de descrever uma prática, ou conceito de modo neutro e externo. O termo se baseia na famosa sentença do matemático grego Arquimedes, na qual ele afirma que poderia mover a Terra caso tivesse um ponto de apoio. “No Direito, os arquimedianos acreditam ser capazes de descrever o Direito sem se engajar em julgamentos internos a ele. Então você teria um ponto privilegiado de análise”, diz Daniel Murata.
Para o pesquisador, o vício — que à primeira vista poderia ser lido por alguns como uma vantagem — se configura à partir de que a neutralidade, caso fosse de fato alcançada, traria uma representação muito empobrecida do Direito. Algo de tal natureza deixaria de lado muitos elementos centrais da prática ou conceito, como as divergências e os conflitos, de modo a falhar na própria intenção descritiva.
Murata utiliza um exemplo para demonstrar como o Direito não possui uma essência (e que mesmo que possuísse, ela seria inacessível) e como nós nunca conseguimos ser arquimedianamente neutros: “Imaginemos dois deputados se engajando, de boa fé, num debate sobre a justiça de cotas raciais. Para efeitos práticos, vamos chamar um de Jean e o outro de Jair. Ambos compartilham entre si o significado do que são cotas. Eles divergem, no entanto, sobre o próprio conceito do que é justiça. Jean acredita que a justiça depende de equidade. Mas o que é equidade? Equidade depende de considerações sobre iguais oportunidades. Mas o que é igualdade? Vai depender da consideração que entendemos devida aos cidadãos. Mas o que é consideração? De outro lado, Jair vai atrelar a justiça ao mérito de cada um. Mas o que seria mérito? Mérito é o reconhecimento do esforço. Mas quando o esforço é valioso? E assim a discussão continua. Não existe um ponto fundante a partir do qual erguemos nossos conceitos. Eles são todos interligados”.
Em outras palavras, os conceitos necessários para entender os fundamentos do Direito seriam todos interligados, interdependentes e suscetíveis às diferentes interpretações. Murata embasa seu argumento citando um conceito do filósofo Wittgenstein chamado “Formas de Vida”. “Nós compartilhamos as formas de vida, segundo Wittgenstein, quando nossos usos de linguagem fazem sentido para nós. Quando eu digo ‘cima, baixo, direita, esquerda’, você entende, porque temos o mesmo aparato sensorial. Quando conto uma piada, também. Mas se eu contasse a mesma piada para um esquimó, ainda que na língua dele, talvez ele não entenda, porque não compartilha conosco determinados usos da linguagem”.
Por isso, para Murata, quando o Jean e o Jair do exemplo anterior divergem, eles compartilham a mesma forma de vida. Ambos se comunicam sabendo que estão divergindo, e sabendo que estão divergindo sobre um determinado assunto — no caso hipotético, a justiça. “Não é uma conversa de loucos. Eles se entendem, mas divergem. Isso é um compartilhamento de forma de vida”, diz o pesquisador, se referindo à aplicação de Wittgenstein que Dworkin e Macedo Jr fazem para compreender o Direito.
Ao compartilharmos formas de vida, compartilhamos condições de sentido para as possíveis interpretações sobre o que é o Direito. Essas interpretações estão articuladas com interpretações que fazemos de outros conceitos, tornando assim inescapável o recurso a julgamentos éticos, políticos e morais. Deste modo, a possibilidade de uma teoria verdadeiramente arquimediana do Direito desaba.
Por que estudar a filosofia do Direito
Em um último momento da entrevista, Daniel Murata explica sua paixão pela Filosofia do Direito. O pesquisador sempre se sentiu mais ligado à vontade de pesquisar, em oposição à grande maioria dos estudantes de Direito, que sonham em advogar. Conta que passou na OAB, por exemplo, mas nunca foi pedir a carteirinha.
“Para entender o que é feito no Direito, é necessário estudá-lo, refletir sobre”, afirma. “Ronald Dworkin diz que ‘a teoria do Direito é sempre o prólogo silencioso de qualquer decisão judicial.’ Se você tem uma vida no direito, mas não reflete sobre o que faz, corre o risco de se tornar um robô, um mecânico. Ou simplesmente um frustrado, por fazer algo, mas não entender o que faz, nem por que faz. Refletir sobre o Direito auxilia o jurista a compreender o que ele mesmo faz em sua carreira. Quem sabe até advogar melhor”.
Daniel Murata foi bolsista regular de mestrado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ressalta que as opiniões reproduzidas nesta entrevista são suas, as quais, segundo ele faz questão de frisar, não necessariamente representam a visão da Fapesp.
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