A perspectiva de valorização das áreas verdes, seguida da especulação imobiliária e do turismo ecológico, tem preocupado a população de Vargem Grande. Ao que tudo indica, esses novos horizontes, que já são uma realidade, serão novos entraves à luta por moradia no extremo sul da capital.
O bairro é repleto de especificidades que o torna diferente de outros casos da periferia paulistana. Nele, estão localizados um patrimônio geológico tombado pela prefeitura e áreas de preservação onde vigoram mais de 17 leis ambientais que ditam os moldes de como deveria ser o cotidiano daquela região. Ao mesmo tempo, Vargem Grande existe, desde 1989, como um loteamento não regularizado. No começo, 2 mil famílias compraram juntas o lote onde hoje vivem pouco mais de 50 mil pessoas, irregulares, com pouca ou nenhuma infraestrutura e ameaçados pela especulação imobiliária em decorrência da valorização das áreas naturais e seu potencial turístico.
A tese Manancial de contradições: o conflito entre o morar e as políticas de preservação, defendida por Amanda Bonuccelli, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, concluiu que o discurso de preservação da natureza influencia na produção e reprodução do espaço e da vida dos moradores de Vargem Grande, bairro localizado no distrito de Parelheiros, no extremo da zona sul da cidade de São Paulo. O estudo buscou compreender como se dá a relação entre as políticas de preservação do meio ambiente e a luta por moradia e como a demanda pelo verde transforma o espaço dos moradores das periferias da cidade.
“O verde está presente no processo que levou os moradores para lá. A valorização da cidade e a especulação imobiliária fizeram com que essas pessoas procurassem cada vez mais a periferia para morar. Eles saíram de áreas em que o verde foi reivindicado pela especulação imobiliária”, explica a pesquisadora. “O debate da preservação ambiental estava presente nesse movimento que levou as pessoas para lá. Está presente na gentrificação da cidade. E agora o verde faz com que elas não consigam uma moradia regularizada e uma boa infraestrutura na periferia. Essa é a contradição.”
A luta por moradia
Amanda apresenta em sua tese um panorama histórico da formação de Vargem Grande, construído por meio das rodas de memória realizadas com moradores do bairro, participação em reuniões com órgão da gestão pública e a análise de dados documentais. Ela mostra que foi com a União de Favelas do Grajaú (Unifag) que o movimento por moradia naquela região se iniciou. Foram aglutinadas por meio da Unifag que as primeiras famílias conseguiram comprar a antiga fazenda e dividir o terreno em loteamentos.
“Vargem Grande é a intensificação do processo de precarização do urbano. As pessoas se organizaram da forma que puderam para garantir o seu direito de moradia”, conta Amanda. Segundo sua pesquisa, eram pessoas que já moravam em outras áreas da região, como o Jardim Edith, o Jardim Ângela, Santo Amaro e Grajaú, ou pessoas que já não conseguiam arcar financeiramente com a vida no centro. Na década seguinte, o loteamento passou para o controle da Achave, a Associação Comunitária Habitacional de Vargem Grande.
Muitos dos que chegaram no bairro, no início de sua construção, não sabiam da existência da cratera, que ainda não havia se tornado um patrimônio público. Mas algumas leis de preservação ambiental já vigoravam. “Essas leis não eram colocadas em prática. Não tinha fiscalização do lugar. A discussão ambiental naquela época não era tão forte quanto agora, então as pessoas ocupavam mesmo aqueles espaços e pouco se discutia. Tinham acabado de descobrir que aquela formação rochosa era uma cratera, isso é um dos aspectos que tornou mais forte o debate ambiental na região. Mas as outras políticas davam abertura para a moradia. Tanto que o próprio governo estadual colocou um presídio lá na cratera, que é o maior responsável pelos dejetos que caem na represa Billings”, comenta Amanda.
A pesquisa mostra que outros casos de loteamento na região foram bem sucedidos e conseguiram a regularização do município. “Existem áreas tão conflituosas como Vargem Grande e que conseguiram a legalização. Em Vargem Grande são várias políticas de preservação ambiental juntas, além do patrimônio geológico, aí eles não conseguem regularizar o local”, explica a pesquisadora.
Os relatos dos moradores mostram que eles são com frequência tratados como “criminosos” e “invasores”. Os moradores são considerados irregulares pelo poder público e acusados de invadir as terras que não são deles, apesar da compra do terreno.
“Não é a primeira escolha da população urbana, morar longe das áreas centrais, longe de onde são oferecidos mais empregos, longe de hospitais e escolas. Não é a primeira escolha morar em áreas não asfaltadas, sem saneamento básico. Além disso, não são escolhas individuais, um processo urbano produziu isso”, explica Amanda.
Ações do Estado
O trabalho de campo de Amanda mostrou que a intermediação com o Estado é custosa e praticamente inexistente. É a Achave quem faz a maior parte dessa mediação e tenta reivindicar as políticas públicas do governo no bairro. Segundo Amanda, quando os moradores comentam sobre o diálogo com o governo, o discurso é de ausência. Entretanto, o Estado, de fato, não está ausente em Vargem Grande. Pelo contrário, ele se faz muito presente por conta das questões ambientais.
“O projeto de urbanização da região foi feito sem conversa real com os moradores. Muitos deles só falam que o patrimônio geológico simplesmente congelou a região, que não pode fazer mais nada lá e que todo projeto, que poderia ser interessante para eles, foi todo feito sem pensar em quem já mora lá e na realidade do bairro. Acho que essa relação é bastante conflituosa por isso”, explica Amanda.
Em sua pesquisa, ela frequentou reuniões com órgãos públicos e constatou que não havia uma postura de preocupação com o morador, mas, sim, com o espaço. “O Estado separa a crise ambiental da crise social”, concluiu Amanda a partir da análise do cotidiano em Vargem Grande. “Temos um problema ambiental e social na cidade, mas eles são problemas que o governo pensa sempre a solução de forma separada. Se você não os entende juntos, você não resolve nenhum dos dois. Eles são uma crise só”, constatou.
“Quando participei das reuniões da gestão da área de preservação ambiental, discutia-se apenas a gestão ambiental da região, e os moradores eram sempre empecilhos”, relata Amanda, que já ouviu as famílias serem chamadas de criminosas ou invasoras. Segundo a pesquisa, é um lugar comum tratá-los como os culpados por toda a poluição dos mananciais da região e pelo desmatamento na área.
Potencial turístico da região
Um dos projetos feitos pelo Estado ao longo desses anos de ocupação da região foi o Parque da Cratera, cujo discurso oficial é o de ser um projeto sustentável. Nele, quase 800 famílias são desalojadas. A prefeitura planejava mudá-las para apartamentos que ficam localizados do outro lado da cratera. Para a construção dos apartamentos, a área ainda precisaria ser desmatada. Até agora, o projeto, que era uma obra do governo federal, encontra-se estagnado. Entretanto, não é só o deslocamento de pessoas que está congelado, o asfalto, o transporte público, o tratamento de esgoto e de água, a dignidade de uma moradia regularizada, tudo isso também permanece sem mudanças.
Em Vargem Grande, a área para a qual o governo planeja realocar uma parte das famílias é uma região que precisa ser desmatada para a construção dos apartamentos. “Por que pode desmatar lá, mas não pode desmatar onde eles estão? São sempre escolhas que são feitas e que servem a alguém, e nunca é a população mais empobrecida da cidade”, comenta Amanda.
A desculpa das leis ambientais e da preservação da área da Cratera, segundo aponta o trabalho, são usadas sistematicamente para justificar a falta de infraestrutura. Foram os moradores que construíram todo o bairro, desde escolas e igrejas a postos policiais.
O turismo ecológico está inserido no que o trabalho diz ser uma dinâmica de interesses. O Parque da Cratera, por exemplo, é um parque turístico. Amanda ainda aponta que mesmo os incentivos de preservação vêm da Secretaria de Turismo. O trabalho mostra que a mesma Secretaria tentou inserir um trajeto turístico guiado na região de Parelheiros, que até hoje não vingou. “O turismo num lugar onde moram muitas pessoas é difícil. Ou você as tira de lá ou a área de turismo não fica muito interessante para os de fora”, explica Amanda.
O ecoturismo também está inserido na dinâmica de interesses que molda o conflito e parece ser a principal via pela qual o Estado tem agido. “A virada da situação foi quando o espaço de Vargem Grande começou a interessar enquanto patrimônio, política de turismo e negócio lucrativo aos agentes privados, então o loteamento começa a se tornar um problema”, explica Amanda. “É um processo que se vive desde os finais da década de 70. Com isso, o verde torna-se uma moeda de enriquecimento dessas áreas.”
A região, além da área verde e da formação geológica, ainda abriga cachoeiras, Mata Atlântica e reservas indígenas. “Há esse impasse de valorizar a região, sem retirar todos os moradores e ganhar dinheiro com aquele espaço via turismo”, explica a pesquisadora.
Valorização das áreas verdes
A valorização econômica das áreas de mata e de mananciais faz com que, segundo os estudos da tese, o debate ambiental sempre chegue pelo não. “Isso não é de vocês, é da cidade” ou “Vocês não tem esse direito” foram frases ditas por agentes do Estado e ouvidas por Amanda durante sua pesquisa de campo.
O debate da preservação ambiental encontra-se, de acordo com a pesquisa, a serviço da valorização financeira da cidade. As áreas verdes tornam-se mais elitizadas em decorrência de seu encarecimento, que expulsa os moradores menos abastados para as periferias. Torna-se insustentável pegar pelos serviços e pelos aluguéis das regiões onde a especulação ocorre. A tese defende que são nessas relações que se vê as contradições da reprodução do capitalismo. “A sustentabilidade, nesse caso, é bastante insustentável para as pessoas mais pobres”, afirma a pesquisadora.
Amanda exemplifica com a questão da valorização das áreas de parques. Segundo a pesquisadora, são as áreas da cidade por onde a especulação imobiliária mais se espalha. “Hoje, a gente vive um processo de precarização dos parques com a gestão do Dória. A Prefeitura que entrou assumiu que não vai bancar o cuidado dos parques. Ela quer que vire turismo, mas não acha que deva ser um gasto da Prefeitura. Quem vai pagar pelos projetos de parques é o setor privado, mas para isso, retirando os mais pobres das áreas verdes”, comenta a pesquisadora. O medo é que as privatizações desse tipo cheguem a Vargem Grande.
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