Especulação imobiliária pode aumentar o número de incêndios nas favelas de São Paulo

Comunidades em terrenos privados e próximas de bairros mais caros tendem a ter mais problemas com o fogo descontrolado

Bombeiros apagando fogo em uma favela [Reprodução / Insper]

Estudo do professor Rafael Pucci, da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, indica que incêndios possivelmente criminosos são mais comuns em favelas situadas próximas a regiões com alto valor imobiliário. O Working Paper To Burn a Slum: Urban Land Conflicts and the Use of Arson Against Favelas analisou o padrão de incêndios em comunidades na cidade de São Paulo e comparou as características de cada local. O estudo utilizou números de incêndios e valores de imóveis entre os anos de 2001 e 2016. Foram usados métodos de tratamentos dos dados para eliminar possíveis hipóteses concorrentes e identificar o perfil imobiliário que cada comunidade está imersa. 

O trabalho de Pucci procurou abordar o tema da violência urbana, ainda pouco aprofundada no Brasil. “Os sinais de conflitos fundiários no campo são diferentes daqueles que são na cidade, algo que ainda foi pouco explorado em economia.” A ideia de trabalhar com os incêndios em favelas surgiu a partir de uma série de notícias e casos entre 2010 e 2012. Um deles aconteceu na favela do Real Parque, na Zona Sul de São Paulo. 

Favela do Real Parque

Parte do processo de reintegração de posse de um local da favela do Real Parque [Reprodução / Bruno Fernandes / Flickr]
Durante um seminário organizado pelo Núcleo de Economia Regional e Urbana da USP (Nereus), Rafael usou esse caso como exemplo de sua pesquisa. Parte da favela do Real Parque se localiza em um terreno privado sob disputa, próximo ao bairro do Morumbi e do Brooklin. Durante os anos 90, diversos planos de urbanização foram projetados para a região. A Operação Urbana Faria Lima começou a ser aplicada em 1995, e focava na construção de redes de transporte público e interconexão com outras partes da cidade. Parte do investimento serviu para construir unidades de habitação popular, as Cingapuras, de forma irregular, já que a terra não foi devidamente regularizada. 

Outra operação urbana, a Água Espraiada, coordenou obras e investimentos ao longo da marginal Pinheiros, região essa que hoje concentra algumas das áreas mais ricas da maior cidade do país. “Essas políticas de urbanização e revitalização vão gerar um processo inevitável de gentrificação”, afirma Pucci. Isso significa que essas áreas passam por transformações que as tornam mais atrativas para morar ou investir, o que aumenta a demanda e consequentemente o preço dessas regiões. 

Já em 2010, o plano de construção do Conjunto Habitacional (Cohab) do Real Parque, projetado pelo Escritório Paulistano de Arquitetura, afirma que o local da favela se tornou extremamente valioso com o passar dos anos, muito por conta da gentrificação da região e da proximidade das zonas de transporte. A favela sofreu com um grande incêndio em 2002, e um ainda maior em setembro de 2010. Em 2021, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi organizada para verificar a possibilidade de se esses e outros casos semelhantes em favelas eram criminosos. Em meio a controvérsias, os processos foram arquivados por teoricamente haver outras possibilidades de surgimento acidental, e não ilegal, do fogo. O estudo de Rafael procurou minar essa visão.

Tendência ao crime

Número de incêndios em relação ao valor médio dos imóveis ao redor das favelas, São Paulo (2001-2016). Fonte: Rafael Pucci. Edição e tradução: João Chahad

A distribuição de incêndios em favelas para o período analisado é não-linear em relação ao valor da terra, como mostra o gráfico apresentado no trabalho de Rafael. A probabilidade de um incêndio ocorrer em uma favela é substancialmente maior e perceptível somente nas favelas nos terrenos mais caros da cidade. Essa tendência é válida apenas para favelas em terrenos privados, o que corrobora para a hipótese de que há um conflito entre o dono e os moradores daquela região.

Outro fator analisado é a infraestrutura. O relatório final da CPI de 2012 apelou para os fatores climáticos, pela época de secas que São Paulo enfrentava, e por questões como a “sobrecarga de energia em instalações elétricas precárias, uso de botijões de gás e principalmente a madeira, largamente utilizada nas construções, são materiais de fácil combustão.” Porém, Pucci analisou que as diferenças de infraestrutura não acompanham as distribuições de incêndios não-linear. Favelas em regiões mais valorizadas não possuem condições piores que outras para esse comportamento ser observado.

Os dados e abordagem do professor indicam que a hipótese inicial parece estar correta. Os incêndios em favelas parecem ser afetados pela alta valorização do terreno ao redor, e não somente por questões infraestruturais. O fogo pode ser um recurso que afeta na luta fundiária urbana. A remoção de pessoas da comunidade de maneira legal é desencorajada. “É um processo custoso; o uso de incêndios dificulta a investigação e é capaz de mover muitas pessoas de uma vez.” 

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