O uso de medicamentos como via de resolução dos problemas é a característica mais aludida da medicalização. Trata-se, entretanto, de um fenômeno que abarca um sistema amplo de controle calcado no saber médico, como constatou a pesquisadora Andreia Mutarelli em tese de doutorado, no Instituto de Psicologia da USP. “A medicalização é uma expressão do modo de o homem olhar o mundo que busca antecipar os resultados e assegurar um padrão de comportamento da sociedade”, explica.
Além de ampliar o entendimento a respeito da constituição atual da medicalização e seus alicerces, Andreia também investigou as formas de estratégias e sentidos de resistência nas experiências francesas.
Medicalização
Entre as ramificações possíveis do conceito de medicalização, a perspectiva encontrada pela pesquisadora está associada à submissão da complexidade dos fenômenos humanos à medicina, de modo a não levar em conta a pluralidade de causas. “Em vez de ocorrer uma análise da questão como algo que pode ser determinado culturalmente, politicamente, geograficamente, recorre-se unicamente à linguagem médica que patologiza.”
Isso pode se dar desde a medicação de uma criança considerada agitada em sala de aula até a formulação de políticas públicas na área da saúde. E, nesse ponto, a diferenciação entre medicação e medicalização é fundamental. “Quando a gente olhou para todos os outros saberes possíveis que podem dizer daquela situação, então não se trata de medicalização, ainda que se tenha, no fim, optado pelo tratamento com remédios.”
Fenômeno e fenomenologia
A doutora em psicologia dedicou, então, um olhar fenomenológico sobre a resistência à medicalização, baseado, sobretudo, nas ideias de Heidegger (1889-1976). O método filosófico opera, por si, como meio de oposição ao processo de redução das questões humanas às ciências naturais ao trabalhar com concepções de mundo diferentes das que embasam a medicalização.
Para o pensador alemão, o homem tanto apreende o sentido das coisas quanto é determinado pelo que está posto. Desse modo, o homem existe apenas enquanto ser-no-mundo e a compreensão da realidade é dada como um desdobramento das possibilidades em determinado contexto. A fenomenologia supera, assim, a ideia do conhecimento absoluto, uno, e passa a ter como norte o ponto de onde se parte para conhecer algo.
A medicalização, pelo contrário, alinha-se ao modo técnico, observado por Heidegger, de se debruçar sobre o mundo. Está inserida, portanto, num formato que visa à prevenção, controle de riscos, eficiência e produtividade.
Resistência
Na França, a pesquisadora teve contato com profissionais da saúde envolvidos com coletivos de resistência à medicalização (L’appel des appel, Stop-DSM e Pas de zero de Conduite). São grupos que se organizaram, a princípio, contra políticas públicas específicas e, depois, seguiram na luta. No caso do Pas de zero de Conduite, o movimento pretendia opor-se a um projeto de lei que buscava detectar transtornos de conduta em crianças de até três anos de idade a partir de comportamentos considerados desviantes, com a finalidade de prevenir a delinquência juvenil. A proposta foi barrada após a coleta de mais de 200 mil assinaturas.
Segundo Andreia Mutarelli, a metodologia empregada consistiu na realização de entrevistas e análise documental das publicações desses grupos. A psicóloga chegou a quatro pilares da medicalização cujo compromisso ético é alheio ao bem estar dos pacientes. Uma delas é a cristalização das pessoas dentro dos diagnósticos, contra a qual se resiste com a adoção de um pensamento que coloque o homem como sujeito indeterminado e aberto ao mundo. “Se há essa percepção, quando estamos atendendo, pesquisando, vivendo e se relacionando, é uma maneira de resistir, porque a medicalização se apoia num saber positivista, da ciência natural, de verdade unívoca.” Dentro dos coletivos, foi observada a reunião de equipe multidisciplinar entre as estratégias de resistência a este fundamento da medicalização.
Outro aspecto é o uso de metodologia única, valendo-se da pretensão de objetividade. A resistência centra-se, então, na garantia da pluralidade dos métodos. O terceiro pilar da medicalização consiste na “biologização” das problemáticas humanas, como se todas tivessem raiz no organismo. “Neste caso, a criação de redes, como os coletivos, que pensam o ser humano através de diversos prismas, sem individualizar a questão, é importante.”, comenta Andreia.
Por fim, a excessiva prescrição de medicamentos pautada por interesses financeiros configura o fundamento mais relacionado à medicalização. Aqui, os cuidados multifocais e multidisciplinares podem fazer frente, uma vez que, sob os cuidados de outros profissionais que não apenas os médicos, a hiperprescrição torna-se mais difícil.
Conforme a pesquisadora, as quatro bases da medicalização estudadas confluem para dois pontos mais abrangentes: a manutenção da ética profissional e o fortalecimento do espaço político como os principais sentidos da resistência. No primeiro caso, a pesquisadora relata que tanto a pluralidade do campo acadêmico quanto a postura receptiva às imprevisibilidades do futuro fazem parte de uma conduta ética. “Quando o profissional entra com a teoria pronta e não é afetado pelo paciente, então não há ética”.
O segundo sentido, considerado “o mais amplo apontado por todas as estratégias de resistência identificadas”, é o fortalecimento do espaço político. A política rege o modo de vida plural e tem como premissa a circulação da palavra nos lugares de convivência, onde se realiza o diálogo com pontos de vista distintos.
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