Um grupo de pesquisa do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP está desenvolvendo um projeto que visa a compreender o papel da atenção primária à saúde no suporte a casos de violência contra mulher. O trabalho está sendo realizado em parceria com o grupo de Violência Doméstica e Violência da Universidade de Bristol, contando com o Centro de Violência de Gênero e Saúde da escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e com a Divisão de Saúde Pública da Universidade Nacional de An-Najah, na Palestina.
O projeto tem como base uma pesquisa feita anteriormente na Universidade de Bristol, que convidou as Profas. Ana Flávia d’Oliveira e Lilia Blima Schraiber para darem prosseguimento a ela no Brasil. O projeto inglês se chamava Identification and Referral for Safety (Identificação e Referenciamento para Segurança) e levou pessoas atuantes em Centros de Referência – que dão auxílio para mulheres vítimas de violência – para a Unidade Básica, treinando médicos e enfermeiras não somente com um médico, mas com uma ativista. Assim, os pesquisadores envolvidos avaliaram as diferenças geradas por esse tipo de intervenção, destacando uma mudança muito significativa no referenciamento desses serviços.
Nesse sentido, o projeto que está sendo desenvolvido no Brasil tem como objetivo criar e testar a possibilidade de se implantar uma intervenção na atenção primária – ou seja, os postos de saúde e consultórios, por exemplo. “Queremos desenhar essa intervenção de uma forma participativa, com os profissionais de saúde, os gestores, as mulheres e as profissionais que trabalham nos serviços especializados em violência”, explica Ana.
O mesmo está sendo feito em relação à Palestina, também com pesquisadores engajados na tentativa de adaptar os feitos ingleses aos seus respectivos contextos nacionais. Ana conta que tem sido uma experiência interessante notar as diferenças e semelhanças da violência contra a mulher nos diferentes países envolvidos no projeto – o Brasil, a Inglaterra e a Palestina. A invisibilidade dessa violência foi indicada por Ana como uma dessas principais similaridades; há uma dificuldade dos médicos em ouvirem os casos, identificarem o problema e terem um plano de ação. Outra semelhança, como a pesquisadora apontou, é a importância do movimento de mulheres, das amigas, das familiares femininas e dos Centros de Referência para lidar com essas questões. E, por fim, há nos três países uma desvalorização do tema nas políticas públicas.
A importância do sistema
Ao redor do mundo, a assistência à saúde é dividida em níveis de atenção. Essa segmentação, segundo Ana, está relacionada a suas respectivas densidades de incorporação tecnológica e material, além da raridade e especialização da patologia com a qual trabalham. No nível primário, há o primeiro contato do paciente com o sistema de saúde. Exemplos disso são as Unidades Básicas de Saúde – mais conhecidas como postos de saúde – e o SUS.
“Quando a atenção primária é bem feita, 85% a 90% dos problemas de saúde deveriam ser resolvidos, porque ela trabalha com problemas de saúde mais comuns”, diz. A professora completa, no entanto, que se trata de um nível de atenção complexo em si – já que lida com a pessoa como um todo e é a porta de entrada ao sistema de saúde. Além disso, possui uma alta capacidade relacional com os usuários: sendo geralmente próximos a residências, é frequente que haja um acompanhamento do paciente ao longo da vida.
Nesse sentido, Ana aponta o sentido de focar o projeto nos serviços de atenção primária. “É o lugar onde as mulheres vão para vacinar os filhos; quando está com uma dor de cabeça; quando está com uma cistite; para fazer pré-natal; para conseguir contracepção; para levar um idoso”, diz, completando que há muitos serviços que já sabem de antemão quando há uma mulher em situação de violência.
Etapas do projeto
Ele foi dividido em três etapa, segundo Ana. A primeira, que está em curso, consiste na pesquisa das barreiras e dos facilitadores para a identificação da violência doméstica, com base em artigos publicados a respeito. Já a segunda etapa pretende enviar um relatório desses obstáculos para os interessados, atrelado a uma proposta de intervenção – que, como especula Ana, provavelmente contará com um treinamento para todos os profissionais.
“Via de regra, a gente já conhece em várias partes do mundo que é necessário ensinar o que é violência doméstica e, especialmente, ensinar como reagir, o que fazer e para onde mandar”, diz, ressaltando a importância de uma rede intersetorial, que possa receber as mulheres fora do sistema de saúde, mas dialogando com ele. A terceira etapa, por fim, será a implementação da intervenção em duas Unidades Básicas, fazendo uma avaliação das possíveis mudanças.
Instrumentos de análise
Para auxiliar em seu desenvolvimento, o estudo testará uma ferramenta de avaliação da prontidão dos sistemas de saúde, que está sendo desenvolvida pela OMS. O instrumento consiste em um check list, com perguntas para o gerente referentes à presença de protocolo para casos de violência; à utilização de um guia de serviço pelos profissionais; à existência de uma sala fechada, com privacidade sonora; à disponibilidade de contracepção e emergência; entre outras.
“Trata-se de uma lista de condições para o atendimento daquela unidade”, afirma Ana. Além disso, há a análise de quais elementos são necessários para que a política de saúde incorpore, de fato, a questão da violência contra a mulher. “Se existe alguma vantagem política, um orçamento próprio para esse tipo de problema, se há um suprimento de insumos para as unidades; se existe accountability; se os serviços são cobrados e avaliados pelo que fazem; se têm ouvidoria. São vários blocos.”
O projeto contará também com a tradução e adaptação de uma ferramenta anteriormente denominada Premis (Physician Readiness to Manage Intimate Partner Violence), agora nomeada PIM, para a avaliar a prontidão de médicos para identificar o problema. Segundo Ana, “o instrumento também é capaz de responder o quanto estão aderidos a mitos, como ‘a culpa é do álcool’. São várias perguntas e utilizaremos o questionário para avaliar se a nossa intervenção e o nosso tratamento teve mudanças.”
Para organizar a intervenção, será utilizado ainda um terceiro instrumento, denominado Theory of Change (Teoria da Mudança). A ferramenta se assemelha à proposta de um planejamento estratégico. A partir de oficinas, os pesquisadores trabalharão com os profissionais para acordar sobre a intervenção, organizando os obstáculos a serem ultrapassados de forma participativa, como explica Ana.
Na prática
Por mais que o projeto ainda não tenha gerado resultados oficiais, Ana disse já reconhecer algumas barreiras para a identificação da violência. Além da banalização e da invisibilidade da violência, há um medo tanto por parte da paciente quanto do profissional. De um lado, existe o receio da perda do sigilo desse relato; do outro, há o medo de alguma forma de agressão ou da necessidade de dar depoimento na Justiça.
Ana aponta também a precarização dos serviços como um obstáculo. Na Inglaterra, ao provarem que o treinamento de profissionais da saúde aumentava o referenciamento para os Centros de Referência, o governo inglês passou a fornecer maior verba a esses centros, prevendo um aumento de demanda, como conta a pesquisadora. “Aqui a gente gostaria também de produzir evidências científicas de que vale a pena investir tanto nos serviços de saúde de atenção primária, quanto nos Centros de Referência”, diz. “Existe muita violência e ela não está muito atrelada à saúde.”
Ana evidencia que uma dificuldade é o corte de verbas no setor, tanto nas políticas públicas relacionadas à violência contra a mulher, quanto naquelas que se referem à atenção primária. “Então produzir evidências não te garante que as políticas serão implementadas, mas ajuda a pressionar”, aponta. Para ela, para que esse tipo de pesquisa tenha impacto social, é necessário que ela se transforme em política pública. “Ele precisa estar ao alcance da população que financia esse tipo de trabalho.”
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