Os desafios das mulheres na agroecologia

Artigo reflete sobre as questões de gênero na agricultura, nas pesquisas e nas tecnologias

Segundo Márcia Lima, ainda que o papel das mulheres na agricultura seja inegável, não se discute muito sobre a questão de gênero no campo. Foto: Domínio Público

A agroecologia é constituída por pautas de ciência, tecnologia e movimentos sociais. Trata-se de um campo de estudos que busca um exercício sustentável da agricultura, a diversidade e soberania das culturas, englobado no agricultura familiar. Dentro deste contexto, o artigo Questões sobre gênero e tecnologia na construção da agroecologia, do volume 15 da revista da USP, Scientiæ Studia, discute o feminismo e o participação das mulheres no desenvolvimento tecnológico e social agrícola.

Tendo em vista que a sociedade é patriarcal, ou seja, privilegia sistematicamente os homens em detrimento das mulheres, e que esse patriarcado, portanto, está presente nas mais diversas esferas sociais, para a Márcia Maria Tait Lima, co-autora do artigo, é difícil definir uma diferença entre como ele se manifesta no meio urbano e no meio rural. “De uma forma bastante genérica, nas comunidades menores e nas áreas rurais, os estudos (teóricos e de campo) indicam uma maior ‘resistência familiar e social’ à participação feminina nos espaços públicos e políticos e o reconhecimento de uma responsabilidade compartilhada pela casa e reconhecimento dos trabalhos desempenhados neste âmbito com gestão da vida; também a liberdade individual e sexual e dificuldade de romper papéis tradicionais como de constituir uma família; a falta de recursos, renda e terra em seu nome para emancipação. Porém, estes exemplos de diferenciação não são regras. O rural e seus modos de vida e organização familiar e social não estão congelados no tempo. Ainda existem diferenças entre comunidades, entre atuação de movimentos sociais e de cunho feministas, entre outros fatores que influenciam essas manifestações do patriarcado”, analisa Lima.

O estudo se detém também a criticar a percepção da ciência e tecnologia como instrumentos isentos de substância social e política. “No livro Tecnociência e cientistas: cientificismo e controvérsias na política de biossegurança brasileira, faço um estudo, uma reflexão com elementos empíricos sobre este uso do discurso da neutralidade em matérias e artigos em torno de controvérsias na regulamentação e liberações de cultivos transgênicos”, lembra a pesquisadora.

“Este estudo pega um período bem atual, da 1ª Lei de Biossegurança de 1996 até liberações e controvérsias nos anos 2000 e o que vou tentar mostrar através dos discursos de pesquisadores é justamente este argumento da neutralidade sendo mobilizado para fechar controvérsias, deslegitimar posições. Observei como grande parte da crítica ou resistência aos transgênicos, mesmo quando vinda de outros cientistas ou grupos de especialistas e principalmente de organizações civis e movimentos, era classificada como obscurantista, ideológica, política; enquanto a posição defesa como a única científica”, aponta Márcia. “Ou seja, este discurso da neutralidade, em vários casos controversos que envolvem a noção de risco e de precaução, é mobilizado justamente pelos grupos científicos hegemônicos, é uma forma de apagar pluralidade e as divergências. É, muitas vezes, um mecanismo para manter o status quo relacionado a um campo disciplinar, apenas uma ou algumas áreas de conhecimento, de uma determinada proposta, aliança ou projeto tecnocientífico.”

As tentativas de, segundo o artigo, buscar “a convergência entre o acadêmico e o ativismo político” não é uma questão tão discutida, ainda que não seja uma linha de pesquisa recente. “No âmbito das epistemologias feministas esta proposta está presente com o próprio surgimento dessa nomenclatura ou dos Estudos Feministas da Ciência e Tecnologia, ainda na década de 70 junto com a vertente mais ampla denominada Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia ou Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade”,  conta Lima. “Se quisermos ampliar um pouco as entradas desta ideia e reconhecer todo trabalho feito por uma linha de pesquisadores e pesquisadoras latino-americanos, desde a década de 60 (mesmo antes) vem se pensando em colocar novos parâmetros para as pesquisas científicas e o papel da Universidade na América Latina, me refiro aqui a vertente da Pesquisa Ação Participante e do Pensamento Latino Americana em Ciência, Tecnologia e sociedade (Placts).”

“Esses novos parâmetros seriam definidos pelos contextos de nossos países, no desenvolvimento interno e como ajudar a diminuir e reverter a profunda desigualdade social que vivenciamos com linhas de pesquisa e desenvolvimentos de pesquisas voltados para o ‘povo’ e feitos com participação deste ‘ator’, ou seja, dos setores populares e suas demandas e empreendimentos”, complementa Márcia. “Nesse sentido um conhecimento engajado, direcionado, ou se prefere chamar, ‘militante’.  Como disse, esta ideia não é nova, mas nunca foi amplamente discutida ou apoiada no meio científico brasileiro. Talvez fosse particularmente importante refletir sobre ela, tomá-la a sério neste momento, quando pensamos nas desigualdades persistentes, nos escândalos envolvendo altos setores do empresariado nacional, repensar essa política científica e a onde ela tem nos conduzido e as parcerias e alianças que temos buscado.”

O abismo entres homens e mulheres é inegável. Segundo dados do IBGE de 2010-2011, as mulheres recebem, em média, 30% a menos do que homens desempenhando funções equivalentes. Sessenta por cento da pessoas que trabalham sem carteira assinada são mulheres e elas representam 99% dos prestadores de serviços domésticos. Nas universidades, apesar delas constituírem a maioria em cursos de graduação, mestrados e doutorados no Brasil “persiste uma segmentação por áreas, que muitas vezes ‘coincidem’ com as menos prestigiadas e remuneradas e o número cai drasticamente em postos de maior prestígio e poder  como coordenação, diretorias, conselhos, órgãos de financiamento, reitorias. O fenômeno que as teorias feministas já observaram em vários seguimentos e chamaram de ‘teto de cristal’”, explica a pesquisadora.

As principais estratégias para resistir a este cenário, na opinião de Lima são “dar visibilidade às desigualdades, discriminação e sexismo na sociedade, nas instâncias de produção de conhecimento, tecnologia e inovação e tentar propor mecanismo, buscar aliados, para reverter estas desigualdades. No campo da ciência, fazer que os dados sobre gênero sejam produzidos e analisados com enfoque de gênero e se possível, porque não, com enfoque feminista – que aborda também raça, etnia, estabelecimento de privilégios por sexo, ‘origem’. Promover este enfoque como sendo de interesse para a sociedade e várias áreas de conhecimento e não apenas às mulheres ou outros grupos ‘transformados em minorias’.

Márcia de Lima ainda comenta. “Penso no feminismo, como definido pela Marcha Mundial das Mulheres, como ‘um movimento social e teoria crítica e um marco interpretativo que busca justamente dar visibilidade aos aspectos da relação de opressão entre homens e mulheres que, de outra maneira, (em outros paradigmas) não seriam significativos ou se consideraria normal’. É nessa perspectiva de forma ampla que as teorias e ações feministas vem se desenvolvendo, no sentido mais restrito da academia, como analisa a teórica feminista Cecilia Sardenberg, no sentido de ‘produzir e disseminar saberes que não sejam apenas sobre ou por mulheres, mas  também de relevância  para as mulheres e suas (nossas) lutas’”.

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