Os estudos relacionados aos mecanismos de regulação epigenética buscam entender as modificações ocorridas no material genético de um organismo durante seu ciclo de vida, analisando quais genes são ativados ou desativados em diferentes processos. Nesse contexto, Letícia Anderson, em sua tese de doutorado pelo Instituto de Química da USP (IQ), aplicou os estudos desses mecanismos ao parasita Schistosoma mansoni, responsável por causar a doença esquistossomose – uma das principais verminoses do mundo – com o objetivo de entender e desenvolver mecanismos eficazes para o seu combate.
A esquistossomose – popularmente conhecida como “barriga d’água”, devido ao fato de um dos sintomas da doença ser um inchaço na região abdominal – é uma verminose intimamente relacionada às áreas lacustres e fluviais, onde o parasita penetra na pele humana – seu hospedeiro definitivo – após ter seu ovos depositados nesse ambiente através de fezes. É um ciclo de vida complexo, relacionado a um precário saneamento básico e políticas públicas ineficazes, por isso sendo classificada como uma doença de “terceiro mundo”.
O parasita possui quatro principais formas durante seu ciclo de vida, parasitando dois hospedeiros nesse processo. Inicialmente, após a deposição dos ovos junto com as fezes humanas e sua chegada a alguma fonte de água, a larva do parasita, de nome miracídio, penetra caramujos do gênero Biomphalaria, onde termina seu desenvolvimento. Após esse processo, sai do caramujo na forma cercária, penetrando na pele humana, transformando-se em esquistossômulo, a forma mais jovem do Schistosoma. Em seguida cai nos vasos sanguíneos do homem, completando seu ciclo como verme adulto macho ou fêmea.
Atualmente, um medicamento de nome praziquantel combate a forma adulta do verme. Porém, até que o parasita alcance sua forma definitiva – quando o medicamento faz efeito -, leva-se um intervalo de tempo considerável, próximo a oito semanas, além de existir a possibilidade de que o uso do fármaco selecione parasitas mais resistentes e imunes a ele. O estudo desenvolvido por Letícia e seu orientador, o professor Sergio Verjovski-Almeida, busca o desenvolvimento de algum fármaco que aja na forma mais jovem do esquistossômulo, logo após infectar o hospedeiro humano, impedindo o seu desenvolvimento. “Analisamos a programação da expressão gênica nessa passagem de esquistossômulo para sua fase adulta, buscando um inibidor que pudesse afetar esse processo”, explica o professor Verjovski-Almeida.
Para isso, os pesquisadores fizeram seus estudos com uma droga de nome Tricostatina (TSA), desenvolvida para combater o câncer, mas abandonada devido a sua alta toxicidade.
Muitas drogas anticancerígenas tem sua ação baseada no funcionamento de enzimas de nome HDACs (histona deacetilases), responsáveis por controlar o funcionamento de proteínas chamadas histonas. O DNA normalmente encontra-se “enrolado”, em uma forma em que seus genes não podem ser codificados no processo de transcrição para originar os processos celulares, como a formação de proteínas. “As histonas enrolam ou desenrolam o DNA, dão mensagens relacionadas ao tempo em que esse processo deve ocorrer. Células que proliferam muito, e que possuem alto metabolismo, como no câncer, são objetos para estudar enzimas que “fechem” o DNA para que parem de proliferar”, explica o docente.
“A estratégia geral do projeto da Letícia é estudar inibidores das enzimas modificadoras de histonas, possivelmente já previamente testados em câncer, e que funcionariam atacando o parasita pelo princípio de que é um ser vivo dentro do homem que possui um alto metabolismo, produz centenas de ovos por dia.”
Medicamentos que agissem sobre esquistossômulos teriam uma natureza mais preventiva, sendo ingeridos logo após qualquer contato com áreas de risco. Nesse sentido o parasita nem conseguiria completar seu ciclo de vida pois seria impedido pelo medicamento.
Através dos testes com o TSA, os pesquisadores buscaram entender quais genes do parasita eram afetados pelo fármaco levando à interrupção de seu ciclo de vida. “A partir desse teste, buscamos ver se algum outro gene, de outra enzima modificadora de histonas, havia sido afetado, para saber como poderíamos reforçar esse efeito”, conta.
Os pesquisadores encontraram uma segunda enzima modificadora de histona cuja expressão estava afetada pelo TSA, especificamente uma histona metil transferase. Em seguida testaram uma droga já descrita em outros organismos como inibidora desse tipo de enzima, o GSK343, e verificaram que ela reforçou o efeito do TSA sobre a morte do parasita. Esse tipo de processo é conhecido como sinergia, e aponta para a possibilidade de se combinar duas drogas, podendo funcionar para amplificar o efeito anti-parasita e aumentar a eficiência do tratamento.
Doenças “relegadas”
Por serem enfermidades muito associadas a países pobres e a problemas relacionados à deficiência no saneamento básico, os estudos relacionados às doenças infecciosas causadas por parasitas têm um menor grau de importância em relação a outras no mundo.
A malária é atualmente a doença dessa natureza que mais recebe estudos, muito em parte devido ao seu mecanismo de transmissão, a picada de um mosquito, sendo então mais difícil de ser evitada, o que leva a grandes investimentos de fármacos para seu combate.
A esquistossomose aparece em segundo lugar em termos de estudos mas, mesmo assim, países mais “desenvolvidos” preferem investir em métodos de saneamento básico e políticas de educação pública para o seu combate. No Brasil, em que uma boa parte da população não têm acesso a esse tipo de serviço, o tratamento feito por medicamentos aparece como única solução para combater a doença.
Os estudos desenvolvidos no laboratório do professor Sergio são importantes pois mostram caminhos para se desenvolver métodos de combate a esquistossomose, além de lançar luzes em relação a importância dos estudos de relações epigenéticas para se melhorar medicamentos previamente existentes.
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