Uma pesquisa etnográfica realizada na Tekoa Pyau, uma das aldeias Guarani Mbya, vizinhas ao Pico do Jaraguá, analisou as práticas alimentícias desses indígenas, que vivem confinados em pequenas terras e ameaçados por disputas territoriais, econômicas e sociais. O projeto constatou que, mesmo diante de tantas forças externas, os guarani procuram se manter fiéis ao nhandereko, seu modo de viver, que perpassa por dimensões de saúde e espiritualidade.
Como a cultura não é algo estático, ela acompanha o desenvolvimento social. Um fluxo crescente de pessoas e mercadorias passa, então, a interferir nos hábitos alimentares dessa aldeia. Enquanto há uma pressão por parte da sociedade para que essas mudanças sejam intensas, os indígenas resistem por meio de uma constante reflexão sobre aquilo que é consumido. A pesquisadora Cristiana Maymone, da Faculdade de Saúde Pública da USP, explica como se dá esse contato:
“A alimentação significa infinitas coisas. No caso deles, ela está muito associada à cosmologia. Eles tem apreço pelo alimento industrializado, mas eles fazem a reflexão da transformação que esses alimentos vão causar em seus corpos. Se hoje em dia, isso é o que eles têm, é disso que eles se alimentaram. Mas a alimentação para eles não se relaciona apenas ao corpo, mas à alma”, explica a pesquisadora. “Eles acreditam que as coisas mundanas estão aí para serem consumidas, mas eles procuram ir se despojando de tudo isso, para conseguir uma leveza espiritual”.
O maior contato com alimentos ultraprocessados se dá por meio da Política de Alimentação Escolar, além da distribuição não regular de cestas básicas. Na Terra Indígena do Jaraguá há duas escolas. Uma é o Centro Educacional de Cultura Indígena (Ceci), que equivale a uma creche municipal, e a outra é uma escola estadual regular, que fica na Tekoa Ytu, aldeia vizinha à estudada. Essas instituições oferecem café da manhã, almoço, jantar e dois lanches, desfrutados por crianças de até cinco anos de idade, mas que ficam à disposição de toda a comunidade. Cristiana pontua algumas diferenças entre as duas instituições:
“Hoje, a escola estadual está recheada de alimentos ultraprocessados, enquanto, o Ceci está bem menos. Eles têm batata doce, milho, mel, peixe, alimentos mais in natura e minimamente processados. Não só por serem mais saudáveis, o que é uma categoria nossa, mas porque dialogam melhor com aquela comunidade e é uma reivindicação dela”, explica ela. “Ainda tem bastante pão, margarina, bolacha, mas comparando à escola estadual, que já tem nuggets, purê em pó, feijão e carne pasteurizada e que, por mais que a gente entenda que possa ser uma forma de ter o alimento conservado por mais tempo, não dialoga, porque esse alimento é morto para eles.”
Sobre a divisão entre alimentos mortos e vivos, a pesquisadora relata que, para o guarani, o alimento vivo é aquele que sacia as necessidades de corpo e alma, enquanto aquele comprado no supermercado supriria apenas a necessidade nutricional, mas não alimentaria efetivamente:
“Foi uma pessoa da aldeia que me falou que essa comida que vem da lata já morreu há muito tempo. Ele colocou dessa forma para mim: ‘A comida que está viva é a que a gente vai na mata para pegar, essa é a comida que alimenta o guarani, que tem vida. Quando você abre um pacote, você está consumindo uma comida morta’”.
Contudo, uma questão estrutural impede esses indígenas de coletarem o alimento que melhor dialoga com sua cultura. Dois terços da terra indígena fazem parte de uma unidade de conservação que não pode ser utilizada por eles.
“O Estado alega que os índios podem acabar com o restante de Mata Atlântica de São Paulo. Esse é o argumento para não ceder a unidade para a autogestão indígena, o que poderia ser até uma forma melhor de preservar o meio ambiente. É um problema de todas as terras indígenas; confinadas em um pequeno território degradado, elas são margeadas por essas unidades.”
Plantar em terras tão restritas passa a ser um verdadeiro movimento de resistência. Mais do que uma manifestação cultural, o plantio é parte da vida deles e, frente ao avanço das monoculturas, é uma forma de impedir o desaparecimento de suas sementes.
“Muitos fazem questão de plantar seus alimentos, porque eles conseguem vislumbrar que o sistema atual, com a Monsanto dominando tudo, pode acarretar em uma escassez total de suas sementes tradicionais. Por exemplo, eles têm o milho sagrado [espécie tradicional do milho, diferente do produzido em larga escala] como principal alimento dos guarani. Justamente o milho, cujo tipo comum é a base da alimentação industrializada. Então, quem você acha que vai ganhar essa guerra?”
Esse conflito é mediado por uma série de políticas de Segurança Alimentar. Interessante assinalar que este termo passou a ser usado após o fim da Primeira Guerra Mundial, justamente quando ficou claro que um país poderia dominar outro controlando seu fornecimento de alimentos. A alimentação passou a ser uma arma poderosa, principalmente quando aplicada em uma comunidade que não tem capacidade de produzir autônoma e suficientemente seus alimentos. A falta de autogestão nas políticas de Segurança Alimentar é apontada pela pesquisadora como uma das causas de sua pouca eficácia.
“Uma das principais questões é o diálogo de mundos diferente e, principalmente, na área da saúde, esse diálogo não é muito bem estabelecido. Por mais que essas políticas tenham algum cuidado com a proteção cultural, elas não dialogam com aqueles indígenas. A política de alimentação e nutrição não teria que apenas envolver os ingredientes guarani, mas se pensar mais participativa”, explica Cristiana. “Os moradores da aldeia utilizam boa parte dos alimentos que recebem, mas não é isso que eles querem. Eles precisam consumir símbolos também. Não se trata de apenas dar a comida, eles precisam ser ouvidos e fazer sua própria gestão dessas políticas.”
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