Por Marcos Hermanson Pomar – marcoshpomar@gmail.com
O município de Serra, maior do Espírito Santo com seus 494 mil habitantes, aprovou há quase 20 anos a política do orçamento participativo, em que a população civil tem a prerrogativa de fiscalizar e conduzir parcialmente a aplicação do dinheiro público. O pesquisador Cristiano Bodart, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), estudou como a implementação dessa modalidade de atuação alterou o cenário e as formas de atuação dos atores políticos do município.
Ele ressalta que a prática não traz a participação plena, e acaba naturalmente por representar apenas uma parte da população, o que não é o ideal. Ainda assim, é possível dizer que o orçamento participativo (OP) é uma modalidade de condução política que aumenta a presença da sociedade civil não-organizada e o entendimento da máquina pública: “Na maioria das vezes notamos que indivíduos mais participativos tendem a conhecer melhor a peça orçamentária municipal e sua gestão, bem como compreender minimamente os jogos de poder que envolvem as disputas políticas”, ele explica. “A participação no orçamento participativo, no caso estudado, fomentou uma maior disputa política de outros espaços; tornou os integrantes dos movimentos sociais mais conscientes das possibilidades e limitações existentes na gestão pública, bem como ampliou o repertório de mobilização desses movimentos”.
Cristiano também lembra que, pelo contrário do que aconteceu com outros municípios no Brasil, o OP rompeu – pelo menos parcialmente – com a lógica de reforço das desigualdades regionais: “Quanto aos resultados materiais, busquei identificar se de fato o orçamento participativo rompia com o que conhecemos por “princípio da causação circular”, em que o investimento público é destinado a áreas já investidas”. No princípio da causação circular as áreas pobres e periféricas, já subatendidas pelo orçamento público, permanecem no seu estado anterior, o que agrava sua precariedade crônica. “No caso de Serra-ES ficou evidenciado que o orçamento participativo foi capaz de romper com tal princípio, porém não o suficiente para inverter a lógica. Diria que sem o Orçamento Participativo o município de Serra teria hoje uma desigualdade socioespacial ainda mais acentuada”, explica Cristiano.
Quando questionado a respeito das táticas utilizadas pelos movimentos sociais antes e depois do orçamento participativo o pesquisador explica que uma abordagem de confronto direto foi substituída por outra, mais calcada na negociação: “Antes do orçamento participativo os movimentos sociais tinham táticas específicas voltadas ao confronto aberto e direto com o Estado, muitas vezes marcado pelo confronto físico e demonstrações públicas, tais como passeatas, bloqueios de vias públicas,entre outras ações”, explica ele. “Com o advento do orçamento participativo o repertório se alterou, passando a predominar a aproximação, marcada principalmente pelo diálogo. Os movimentos sociais passaram a enxergar o gestor público como um possível parceiro e não oponente”.
Hoje, passados quase 40 anos do período de abertura política que marca o princípio do período estudado por Bodart, os movimentos sociais e partido políticos protagonistas de algumas das mais importantes disputas da época – e de hoje, ainda – passam por sua maior crise, representada principalmente no processo de impedimento da presidenta Dilma Roussef. Para Cristiano, a maneira como esses atores mudaram sua inserção na arena política pode nos ajudar a entender alguns fatores deste declínio: “Como os principais movimentos sociais brasileiros dos anos de 1980 originaram-se a partir da esquerda, sobretudo do Partido dos Trabalhadores (PT), as suas relações com esse partido foram sempre muito estreitas. Com a chegada do PT à Presidência esses movimentos sociais, que até então atuavam como opositores ao Estado, tiveram que se readequar a nova condição”, afirma. “Muitos chamariam isso de ‘aparelhamento’ dos movimentos sociais pelo Estado, o que de fato me parece ter ocorrido, o que explicaria o fato de que os confrontos abertos dos anos de 1990 não se repetiram nos governos Lula e Dilma”.
Ao optar por uma abordagem mais branda e pelo relativo aparelhamento, defende Cristiano, o PT e os movimentos que faziam parte de sua órbita enfraqueceram a base real do governo e dificultaram sua defesa. “Notamos as pautas desses movimentos não foram atendidas, mas não houve rompimento de relações. Por outro lado, o PT também não conseguiu atender os grupos políticos mais à direita, o que o levou a ter menor base de apoio e, consequentemente, menor resistência às oposições deflagradas em 2015 e 2016”, diz. “O PT, a meu ver, se distanciou não só dos movimentos sociais de base como também não conseguiu coligar-se com os grupos mais à direita; foi isolando-se e, consequentemente, perdendo apoio e força”. No final, um prognóstico simples: “A esquerda vai precisar se reinventar e o PT, em especial, repensar sua trajetória e apoios, caso queira ter reais condições de voltar ao poder”.
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