Uma pesquisa do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP estudou, a partir de uma visão antropológica, a prática de trabalho do Clube de Biologia Sintética (também conhecido como Synbio), grupo composto por alunos da Universidade. O estudo, desenvolvido pela mestranda Clarissa Reche Nunes, mostra o dia a dia de trabalho do grupo de “biohackers” e sua atuação em uma competição internacional chamada Biomod. Por meio de uma abordagem etnográfica (método que se baseia no estudo de campo e no contato subjetivo com o objeto de pesquisa), a pesquisadora conviveu com o grupo e participou das reuniões e competições.
Biohacker é um termo amplo, mas pode ser resumido em “um hacker que trabalha com vida”. O conceito utilizado por Clarissa durante o mestrado foi o usado pelo grupo de Biologia Sintética, que “entende biohacking como a biologia sintética, que é uma nova abordagem da engenharia genética. É você conhecer tão bem os sistemas biológicos a ponto de ser capaz de criar os seus próprios e interferir neles”. Apesar disso, o foco do estudo não foi a Biologia, mas sim, como esse grupo de estudantes trabalhava.
Clarissa conta que o primeiro aprendizado com o Clube foi a frase “fez aberto, ‘tá’ certo; fez fechado, ‘tá’ errado”, como um lema que, para ela, resumia o tipo de ciência feita por eles: uma ciência aberta e com posição política. “Com essa convivência mais próxima, fui percebendo como que esse ideal político estava expresso no modo de trabalho, que era construído de forma horizontal e não hierárquica, se opondo às experiências que eles (os membros) viviam na universidade”, conta.
Tática de insistência
Essas experiências geravam questões entre o grupo de estudantes sobre as dificuldades no processo de formação científica. Dentre elas, estavam a pouca liberdade criativa dentro dos laboratórios, que os impediam de opinar ou tomar decisões sobre os projetos de pesquisa. Nessa rotina, um acontecimento marcou a experiência do grupo: a morte de um dos seus fundadores, em 2017, enquanto ainda cursava a faculdade. Citando a antropóloga Veena Das, Clarissa conta que esse evento crítico foi de ruptura no cotidiano do grupo, obrigando-os a reconstruir o que a autora chama de “tecido social”: “Isso foi um evento que rompeu o nosso dia a dia e fez com que parássemos para questionar: o que afinal estávamos fazendo ali juntos, toda semana, gastando um tempo enorme nessas competições em que você não ganha nada em troca?”, relata a mestranda.
A pesquisadora descreve que o que manteve o grupo e os estimulou a refazer esse tecido que foi rompido, foi pensar o Clube de Biologia Sintética como um espaço de permanência, onde os membros poderiam permanecer criativamente como cientistas, propondo, discutindo e debatendo. A ideia inicial de Clarissa era ver um movimento de resistência no grupo, mas ao longo da pesquisa, ela definiu o modo de trabalho deles como insistência, “uma tática para insistir estar na universidade”.
A experiência em uma competição internacional
Uma outra vivência estudada por Clarissa foi a participação do grupo em competições internacionais. Apesar da USP ser uma universidade reconhecida por seu conhecimento científico, o que coloca seus pesquisadores em uma posição de privilégio dentro do país, fora dele, os mesmos eram vistos como “periféricos”. Essa percepção ficava ainda mais forte com as diferentes realidades econômicas dos países que sediavam competições de conhecimento.
Em um momento da competição, os cientistas precisavam apresentar um projeto que envolvia interação com a sociedade, uma solução saída do laboratório. “Eles (os membros do Clube de Biologia Sintética) escolheram desenvolver alguns equipamentos a partir de modelos existentes na internet, que podem ser baixados e construídos através de ferramentas como cortadores a laser e impressora 3D”. O grupo montou uma mini centrífuga de bancada, que foi chamada de “Seletora”, como uma referência ao Chapéu Seletor da saga de livros Harry Potter. “Ela tem um chapeuzinho de bruxo desenhado, e toda vez que você liga a máquina, aparece uma das casas de Hogwarts. Eles fizeram isso uma piada, mas usaram a ‘Seletora’ para falar sobre as condições de trabalho aqui no Brasil e do privilégio que é ter um laboratório equipado”, conta Clarissa.
Apesar disso, o uso da “Seletora” foi questionado em bancas de defesa, como uma forma “de perder tempo” durante os experimentos, visto que no mercado existem centrífugas melhores e mais rápidas de serem obtidas, sem necessidade do ”hackeamento”. Clarissa explica que essa fala de “perda de tempo” foi muito importante em seu trabalho, “porque explica um modelo de produção de ciência que é pautado em entrega e em performance, e acaba negligenciando ‘a mágica do bruxo’, que é a criatividade do cientista”.
A química e filósofa Isabelle Stengers, citada pela pesquisadora em sua dissertação, usa o termo fast science para explicar o fazer científico pautado na produtividade, que é uma “ciência rápida, fruto de uma mistura perigosa entre Estado, mercado e ciência”, conta Clarissa. Na contramão disso, a pesquisadora fala que as táticas de insistência e técnicas hackers do grupo de Biologia Sintética são, como Isabelle chamaria, uma “ciência alegre”, que não tem relação com “felicidade”, mas está associada ao aumento da potência de agir e pensar. Uma ciência alegre pode ser uma alternativa em tempos de crise na área. “Talvez desse modo a gente consiga construir outras ferramentas que façam a gente avançar e não ficar preso ao que tem disponível”, finaliza Clarissa, que destaca a importância de que isso seja feito de forma coletiva e democrática.
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