Não se precisa de documentos para sonhar

Tese apresentada em setembro estuda ativismo dos imigrantes não registrados nos Estados Unidos

Dezenas de pessoas protestando e segurando cartazes em defesa dos direitos de imigrantes
Marcha em defesa dos direitos de imigrantes em Los Angeles, Califórnia, setembro de 2017. Foto: Molly Adams

Em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), a pesquisadora Andréia Fressatti Cardoso analisa o histórico da luta por direitos da juventude indocumentada nos Estados Unidos. Ao observar a trajetória e os avanços desse grupo, Andréia propõe entender a cidadania como o pertencimento das pessoas ao lugar, definido na tese como belonging, diferente do modelo atual de filiação nacional (membership).

A tese estuda o grupo definido como Geração 1,5: pessoas que imigraram para os Estados Unidos durante a infância ou adolescência e que, por mais que não tenham documentos estadunidenses, cresceram com os valores que moldam a sociedade norte-americana. Estima-se que entre um e dois milhões de pessoas se encaixam no rótulo.

A juventude indocumentada começa a exigir os seus direitos, principalmente desde os anos 2000, através de protestos, diálogo com políticos e, posteriormente, atos de desobediência civil. Esses ativistas se uniram sob a identidade de Dreamer (sonhador), em referência ao Dream Act (Lei de Desenvolvimento, Assistência e Educação para Menores Estrangeiros), projeto de lei apresentado em abril de 2001 que estabeleceria uma possibilidade de residência permanente e regularização dos documentos, mas que nunca foi aprovado. 

Derrotados em relação ao Dream Act, a Geração 1,5 conseguiu uma vitória parcial em 2012, durante a presidência de Barack Obama. Foi aprovado o DACA (Ação Diferida para Chegadas na Infância), que concede status temporário por dois anos, que pode ser renovado, para jovens indocumentados que cumprem os critérios estabelecidos pela lei. No entanto, na visão dos entrevistados pela pesquisadora, o DACA é apenas “um Band-Aid para uma ferida maior”, essa ferida maior sendo uma reforma da estrutura de imigração nos Estados Unidos. 

Em setembro de 2017, o então presidente Donald Trump, eleito, em parte, por seus discursos anti-imigração, tenta acabar com o DACA. Tendo os canais do executivo e legislativo, pela maioria republicana, fechados à sua pressão, a juventude indocumentada se mobiliza, através do poder judiciário, buscando manter o programa vivo. Três ações legais chegaram à Suprema Corte que, em junho de 2020, decidiu que a tentativa de encerrar o DACA era inconstitucional.

No centro de toda a discussão está a questão da cidadania. Baseando-se teoricamente na perspectiva de Hannah Arendt, Andréia diferencia os conceitos de membership e belongingMembership é um conceito divisivo, ou se é, ou não se é um cidadão. O conceito de cidadania como belonging desafia essa noção dicotômica, a partir de três dimensões estabelecidas pela pesquisadora: a construção dialógica de si; a demanda performativa pelo direito a ter direitos; e a demanda estética pelo direito de pertencer.

“Eu quero trazer a ideia de cidadania como belonging para mostrar que há outras formas de pertencer ao Estado e formas que existem a despeito do Estado.”

Andréia Fressatti Cardoso, em entrevista à AUN

Trump fecha o cerco

Eleito novamente em 2024, Trump alimenta o que Andréia define como uma narrativa de crise da fronteira. “Estamos há 30 anos com crise na fronteira. Como assim uma crise que dura 30 anos? Isso não é uma crise. Isso é um fato”, explica a pesquisadora. O fechamento gradual das fronteiras, tanto físicas, quanto cívicas, inicia-se em meados da década de 1980, e é acelerado após os ataques de 11 de setembro de 2001.

Três policiais fardados algemam homem em frente a uma casa
Oficiais do ICE detêm homem em Phoenix, Arizona, abril de 2025. Foto: U.S. Department of Homeland Security

Neste novo mandato, a via jurídica, utilizada anteriormente pela juventude indocumentada, também se fecha aos ativistas. Com seus juízes indicados no primeiro mandato, Trump agora tem uma Suprema Corte de maioria republicana. “A Suprema Corte que protegeu o DACA em 2020 não é mais a Suprema Corte que existe hoje”, comenta Andréia.

Agora, Trump dá um passo a mais. Em seu segundo mandato, o presidente fortalece o ICE (Serviço de Imigração e Controle de Aduanas), que, desde a tomada de posse de Trump em 20 de janeiro até setembro de 2025, havia deportado mais de 400 mil pessoas, segundo dados do Departamento de Segurança Interna estadunidense.

O processo, que inicia com a detenção e pode levar à deportação, é traumático. Até setembro de 2025, 14 pessoas sob custódia do ICE faleceram neste ano, o maior número desde 2020 – marcado por mortes decorrentes da COVID-19 –, segundo dados do ICE compilados pela Associação de Advogados de Imigração Americanos. 

Nessas circunstâncias, algumas pessoas se retiram dos movimentos, temendo por si e sua família, passando a atuar apenas como advocates: fora da estrutura ativista, mas que ainda participam de marchas e protestos.

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