De tomates amargos a lobos terríveis: o mundo geneticamente modificado

Como técnicas da engenharia genética extrapolam os laboratórios e transformam a vida cotidiana

Especialistas avaliam que a edição gênica pode ser o futuro da biotecnologia [Imagem: Freepik/Reprodução]

Por Amanda Nascimento, Beatriz Almeida Hadler, Lorenzo Souza Daniel, Maria Eduarda Lameza Trepat e Maria Luiza Negrão 

A suposta desextinção do lobo-terrível, que vivia no continente americano há cerca de 10 mil anos, causou repercussão nas redes sociais e na comunidade científica. A empresa Colossal Biosciences, responsável pelo feito, logo admitiu a farsa — tratava-se, na verdade, da manipulação genética de lobos-cinzentos, espécie comum atualmente. Ainda assim, a engenharia genética por trás de tudo é um campo que atrai o fascínio de curiosos e, até mesmo, vira pano de fundo para obras fictícias, como na saga Jurassic Park. Fora da ficção, porém, os avanços nessa área podem ser empregados na vida cotidiana, como para a produção de alimentos e remédios.

Para Marcelo Mendes Brandão, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética da Unicamp (CBMEG), “não temos noção do quanto ela é importante até a engenharia genética entrar na nossa vida”. 

De acordo com o pesquisador, a biotecnologia pode ser definida como “aquela parte da ciência que busca resolver problemas e criar soluções para a sociedade utilizando processos biológicos”. A engenharia genética, por sua vez, é uma parte da biotecnologia que trabalha com a alteração do material genético de seres vivos.

Origens da engenharia genética

O início da história da genética pode ser contado a partir dos experimentos de Gregor Mendel, um monge austríaco. É aqui, também, o primeiro grande salto da biotecnologia, segundo Brandão. Em 1866, Mendel publicou seu trabalho Experiências sobre Híbridos de Plantas, escrito a partir da observação e experimentação com ervilhas. A partir disso, foram delimitadas as primeiras bases da ciência sobre a hereditariedade de características entre indivíduos aparentados.

O segundo salto foi a descoberta da estrutura em dupla hélice do DNA, que ocorreu em 1953, no Reino Unido, e, segundo Brandão, deu início à biologia molecular. O ácido desoxirribonucleico, conhecido como DNA, é a molécula intracelular que contém as informações genéticas dos seres vivos. A sua estrutura se dá pelas ligações químicas entre bases nitrogenadas — componentes que armazenam as informações do código genético. Essas ligações são chamadas de pontes de hidrogênio.

Essas descobertas culminaram no que Brandão considera o grande marco da biotecnologia: a Ovelha Dolly. Em 1997, ela foi apresentada ao mundo como o primeiro mamífero clonado a partir de uma célula adulta somática. “Os cientistas pegaram o óvulo de uma ovelha e células de outra, o que foi implantado em uma mãe de aluguel. Então todo o genoma que estava no animal original passou para o próximo. Biologicamente falando, temos um clone”, explica o professor.

O nome Dolly foi uma referência à cantora norte-americana Dolly Parton. Com o surgimento de uma infecção pulmonar, os pesquisadores optaram pela eutanásia, causa oficial de sua morte. [Imagem: Wikimedia Commons/Reprodução]
Dolly se tornou o centro de muitas discussões na comunidade científica. De início, especialistas mostraram ceticismo quanto à descoberta, no entanto, a clonagem de mais animais (como vacas, porcos, cavalos e até mesmo camelos) comprovou a viabilidade do procedimento em mamíferos. Por definição, clone é a produção de um ou mais indivíduos geneticamente idênticos a outro ser, feito com a réplica do DNA como fonte material. 

Apesar de ter falecido em 2003, idade considerada precoce, Dolly foi o ponto de partida para muitas conversas sobre engenharia genética, tanto por suas limitações quanto pelos questionamentos éticos e morais que a técnica ainda levanta.

Do campo à farmácia

Uma das aplicações práticas mais conhecidas da engenharia genética é a transgenia. Para entender seu funcionamento, a Agência Universitária de Notícias (AUN) entrevistou Flavio Finardi Filho, professor do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. 

Finardi foi uma das únicas pessoas que experimentou o primeiro alimento transgênico do mundo: o tomate Flavr Savr, em 1994. O cientista estava fazendo seu doutorado nos Estados Unidos quando conheceu o laboratório responsável por essa inovação. Ele conta que era um alimento mais resistente ao amadurecimento: “Era um tomate muito bonito e vermelho, mas tinha um sabor de tomate cru, verde. Um gosto adstringente”. Ao voltar para o Brasil, motivado por essa experiência, Finardi foi um dos pioneiros na pesquisa de transgênicos no país. Mais tarde, se tornou presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), responsável por analisar protocolos e aprovar — ou não — novas espécies geneticamente modificadas. 

O processo de transgenia acontece por meio de técnicas chamadas de DNA recombinante, que identificam e isolam os genes de interesse e depois os inserem no DNA da espécie-alvo. As células transformadas são selecionadas e regeneradas até originarem organismos completos.

A descoberta da estrutura do DNA por um grupo de cientistas da Universidade de Cambridge foi essencial para o desenvolvimento de técnicas da biotecnologia
[Imagem: Wikimedia Commons/Reprodução]
Segundo Finardi, esse processo começou a acontecer em organismos de grande importância econômica: as commodities, com a implantação de genes de tolerância a inseticidas e a insetos. O aumento na produtividade agrícola é um dos principais benefícios dos transgênicos, argumenta Finardi. Ele cita como exemplo a produção de milho: “Havia uma larva que comia toda a parte da espiga do milho. Isso causava uma queda de produtividade muito grande. Com a introdução desses genes, houve mais resistência da planta ao ataque daqueles insetos e o melhoramento obtido foi direto, um ganho excepcional na agricultura”. 

Já Douglas Silva Domingues, professor do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP (Esalq), enfatiza os impactos da transgenia para outras áreas. “Um dos exemplos mais clássicos é a produção de insulina humana por bactérias geneticamente modificadas, que revolucionou o tratamento do diabetes ao substituir a insulina extraída de animais”, explica Domingues. O professor também cita a produção de vacinas, como da Hepatite B e, mais recente, da Covid-19. Na indústria, leveduras modificadas são utilizadas para fabricar etanol de segunda geração, “aproveitando resíduos agrícolas que antes não tinham valor comercial”. 

Domingues reafirma a segurança dos transgênicos: “Não há evidências de nenhum efeito adverso comprovado à saúde humana ou animal”. Do ponto de vista ambiental, ele explica que o cultivo de transgênicos pode reduzir o uso de agrotóxicos e otimizar a produtividade. O professor sinaliza, no entanto, um alguns pontos de atenção: “Há possíveis efeitos de longo prazo, como surgimento de plantas daninhas ou pragas resistentes, além da dependência de sementes patenteadas por grandes empresas, o que pode afetar pequenos produtores. Daí a importância fundamental de órgãos públicos para fiscalizar e democratizar o acesso”. 

Reações ao inesperado

Em entrevista à Agência Universitária de Notícias (AUN), a doutora em Biotecnologia e Biodiversidade pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Cecy Pereira Figueira da Silva Neta Mello, explica a relação entre a legislação brasileira e o uso de organismos geneticamente modificados no país. 

A principal legislação brasileira que lida com este assunto é a Lei 11.105/2005 — também conhecida como Lei da Biossegurança — responsável por delimitar todos os processos permitidos e não permitidos dentro da pesquisa e manejo de organismos geneticamente modificados (OGM). Apesar de contar com 42 artigos e criar diretrizes para o funcionamento da CNTBio, a pesquisadora não considera a legislação suficiente. De acordo com ela, a lei encontra-se “defasada frente ao ritmo acelerado das inovações tecnológicas”. Ao comprar um produto transgênico, por exemplo, não há referência ao gene inserido, sua origem ou percentual de modificação genética daquele item. “Essas informações são fundamentais, não apenas por uma questão de transparência, mas por implicações diretas na saúde, como alergias e reações adversas”, completa a pesquisadora. 

A implicação jurídica mais proeminente no uso de alimentos transgênicos é essa transparência — a existência, ou não, de informação adequada sobre o produto e as modificações às quais ele foi submetido. De acordo com Cecy, uma rotulagem clara, visível e precisa dos produtos transgênicos é fundamental para que o consumidor exerça seu direito de escolha clara e informada sobre qual item comprar ou deixar de comprar.

Em 2018, a Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado aprovou o projeto, ainda em tramitação, que estabelece fim da obrigatoriedade do símbolo que indica a presença de ingrediente transgênico na embalagem dos alimentos.
[Imagem: Wikimedia Commons/Reprodução]
De acordo com o doutor Flávio Bertin Gandara Mendes, professor no Departamento de Ciências Biológicas da Esalq, não é possível definir o impacto da inserção de transgênicos em um ecossistema. Apesar disso, o potencial de risco à natureza é tão grande que a maior parte dos países do mundo desenvolveu protocolos rígidos de tratamento para esse tipo de pesquisa. 

Os primeiros transgênicos produzidos em uma pesquisa devem ser feitos em ambientes completamente protegidos. “Eles têm que estar em estufas fechadas”, diz o pesquisador. A partir do seu cultivo em espaços controlados, todas as características do organismo têm que ser avaliadas. Depois, o material é analisado e, se comprovada a ausência ou efeito mínimo de impacto na natureza, esse organismo pode ser autorizado. Ainda assim, nem sempre a permissão vem dessa forma. “Pode ser que a liberação só aconteça em determinados países, regiões e condições”, complementa.

O trabalho de análise profunda desses organismos vem da possibilidade de estragos à natureza e à sociedade. De acordo com Flávio, qualquer transgênico, seja ele planta, animal ou microrganismo, pode causar mudanças nos ecossistemas, já que “são organismos que carregam uma característica não natural”.  

Novas técnicas, novos dilemas

O avanço na engenharia genética amplia cada vez mais o debate sobre as implicações éticas desse tipo de pesquisa. “Qualquer alteração na informação genética de um organismo pode ter consequências negativas para o indivíduo e para outros seres”, afirma o professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, Gabriel Padilla Maldonado. 

Membro da Comissão de Biossegurança do ICB, ele esclarece que a manipulação de genes não é intrinsecamente positiva ou negativa. “É simplesmente uma metodologia de manipulação”. Traçando um paralelo com a engenharia, o docente explica que, da mesma forma que uma paisagem natural pode ser transformada, as células também podem ser modificadas.

Preocupados com os riscos de alterar o material genético, cientistas norte-americanos como o químico Paul Berg, o microbiologista David Baltimore e o geneticista James Watson, encaminharam, em 1974, uma carta a três importantes revistas científicas da época. No ano seguinte, esse grupo de pesquisadores realizou o Congresso Internacional sobre Moléculas de DNA Recombinante, em Asilomar, na Califórnia (EUA). “Nessa reunião, se discutiram os primeiros parâmetros éticos da manipulação genética”, completou o professor do Departamento de Microbiologia do ICB. 

Um dos critérios definidos nesse encontro foi o chamado “princípio da precaução”. Ele estabelece que, quando uma situação pode ter resultados prejudiciais, medidas devem ser previstas anteriormente para impedir ou minimizar essas ocorrências. Apesar dos possíveis efeitos adversos, o docente ressalta que o que torna técnicas de engenharia genética antiéticas é o descumprimento de normas de segurança pré-estabelecidas e a intencionalidade dos pesquisadores.

Segundo Gabriel Padilla, os parâmetros que orientam pesquisas e aplicações da engenharia genética partem de concepções éticas estabelecidas socialmente
[Imagem: Freepik/Reprodução]
Porém, a ciência não está isenta da influência de interesses pessoais, políticos e econômicos. “Como todas as técnicas, a engenharia genética corre o risco de ter usos indevidos, como o caso da energia atômica demonstrado no filme Oppenheimer”, pontua o professor. O uso de terapia genética em células germinativas (óvulos e espermatozoides), por exemplo, pode tanto bloquear potenciais doenças como afetar o desenvolvimento fetal de maneiras inesperadas. 

Padilla adverte sobre a necessidade de cientistas dialogarem com a sociedade para refinar e supervisionar a aplicação da ética de pesquisa. Para ele, a transparência quanto às normas estabelecidas e os procedimentos realizados dentro de laboratórios é fundamental para construir uma relação de confiança entre os cientistas e a sociedade. “Tudo está aberto. Eu brinco que falta só colocar um cartaz na entrada do edifício dizendo ‘sinta-se à vontade’. Todos possuem o direito de ter acesso e pedir explicações”, reitera o docente.  

O que o futuro reserva?

Conforme a engenharia genética avança, crescem as dúvidas sobre o futuro dessa tecnologia. Os especialistas ouvidos pela Agência Universitária de Notícias (AUN) indicam que parte da resposta é melhor exemplificada no caso dos lobos-terríveis: enquanto a afirmação de desextinção está longe da verdade, a edição gênica, que de fato aconteceu, é a aposta de cientistas para novas modificações genéticas.

“Diferente da transgenia, que insere DNA de outra espécie, a edição gênica permite modificar ou ‘corrigir’ genes já presentes no próprio organismo, sem adicionar material genético exógeno”, explica Douglas Domingues. Ferramentas como o sistema CRISPR-Cas9 são usadas para cortar o DNA em um local desejado, o que mitiga a suscetibilidade de reprodução de doenças — como ocorre na clonagem. Segundo ele, a expectativa é que a edição gênica, por ser mais específica e segura, amplie o leque de aplicações, com menos barreiras regulatórias e maior aceitação.

Quanto ao medo antigo de que todos, inclusive seres humanos, sejam substituídos por clones, Marcelo Brandão garante que se trata de um cenário improvável. “Acredito que ainda tenha uma grande barreira, que é a biologia de sistemas. Posso pegar algumas características de organismos e colocar onde é do meu interesse. Mas, é extremamente complexo”, expõe. Além disso, ele destaca que as redes biológicas de cada espécie respondem de modos distintos a estímulos, o que dificultaria o processo ainda mais.

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