Pesquisa da USP explora efeitos da talidomida para reduzir inflamação em órgãos de doadores com morte encefálica

Modelo experimental foi utilizado para avaliar efeitos do medicamento na redução da inflamação do fígado

[Fotomontagem: Beatriz Herminio/Imagens: Freepik]

Em setembro deste ano, um estudo realizado em laboratório no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo foi publicado pela revista Nature. A  pesquisa é uma parceria entre o Laboratório de Neurofarmacologia Molecular do ICB, coordenado pelo professor Cristoforo Scavone, e pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP. O estudo explora os efeitos da talidomida na doação de órgãos em modelo animal com morte encefálica, sendo a talidomida um medicamento com propriedades anti-inflamatórias.

O processo de doação de órgãos de doadores falecidos ocorre após a constatação da morte encefálica dos pacientes (interrupção de todas as funções do cérebro). Alexandre Chagas de Santana, doutorando em neurologia pela USP e especialista em órgãos e transplante explica que a morte encefálica (ou morte cerebral)  apresenta atividade inflamatória intensa, o que leva a uma inflamação dos órgãos do paciente doador, antes da transplantação. 

Nesta pesquisa, o grupo trabalhou com a hipótese de que o NF-kB (fator nuclear kappa B) estaria envolvido com a inflamação de órgãos de doadores com morte encefálica.  O NF-kB é um fator de transcrição e, portanto, está ligado à atuação de genes no organismo. Sua atividade se refere a genes relacionados à resposta inflamatória e foi um elemento essencial a ser avaliado no estudo.

“Os tratamentos de medicamento que tem na área de doação de órgãos, na questão da imunologia, não são feitos no doador, são feitos no receptor.” Santana comenta que os receptores de órgãos são tratados para minimizar a rejeição do organismo ao órgão transplantado e que, atualmente, não há tratamentos para doadores de órgãos focados na resposta imunológica ou na presença do NF-kB. 

O doutorando explica que, no estudo, foi necessário obter um órgão de uma situação com morte encefálica para fazer a avaliação do NF-kB. A técnica é realizada no laboratório do professor Scavone, com quem já havia trabalhado em experimentos com NF-kB durante o mestrado.

Segundo o doutorando, os processos de morte encefálica, independente da natureza da lesão, têm um fator em comum, que é o aumento da pressão intracraniana (pressão do crânio sobre o tecido do cérebro). O projeto foi desenvolvido em ratos e, ao aumentar a pressão neste modelo experimental, induziu-se a morte encefálica. Seis horas após o procedimento, os pesquisadores realizaram diagnóstico semelhante a etapas clínicas para avaliar a expressão de células e citocinas inflamatórias, além da ativação do NF-kB no tecido hepático (fígado). 

Para estabelecer uma correlação com o NF-kB em laboratório, utilizou-se a talidomida, medicamento com propriedades imunomoduladoras e anti-inflamatórias. O estudo foi baseado em três grupos: animal vivo, animal com morte encefálica e animal com morte encefálica tratado com talidomida. 

Santana relata que, ao avaliar o órgão, percebeu-se que todo fígado procedente de um animal com morte encefálica tem uma alta quantidade de NF-kB, e constatou-se também uma diminuição dessa quantidade ao fazer o tratamento com talidomida. A escolha de  avaliar o NF-kB se deu em razão de seu envolvimento com o processo de rejeição do órgão depois do transplante, dado que sua presença pode desencadear uma série de problemas inflamatórios, apesar de não estar necessariamente presente em toda resposta inflamatória. 

A diminuição da resposta inflamatória através do uso do medicamento já era uma hipótese presente na literatura, mas a pesquisa se propôs a apresentá-la em um modelo experimental. O estudo atesta que as propriedades da talidomida foram efetivas na redução de citocinas pró-inflamatórias e na inibição de resposta imunológica, o que levou a uma melhoria nos danos do tecido do fígado.

“Quando você compara a vida do órgão transplantado de um doador vivo e de um doador falecido, que é com morte encefálica, a vida do órgão do doador vivo é muito maior que a do doador falecido por causa da inflamação”, explica Santana.

Com a hipótese de que a talidomida inibiu a ativação do NF-kB, o doutorando afirma que a descoberta dos mecanismos presentes no doador é importante para criar uma estratégia terapêutica, na qual a pesquisa demonstra que a talidomida pode ser usada para resultados benéficos na transplantação, e transplantar um órgão mais saudável.  “A gente fez um modelo pra quem sabe em algum momento expandir isso para a clínica.” Segundo Santana, o estudo não incluiu o processo de transplantar o órgão para avaliar a performance no receptor, o que idealmente seria uma “fase 2” do projeto.

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