
Em cada verão austral (verão para nós, que estamos abaixo da linha do Equador), uma equipe de pesquisadores sai do Butantã em busca do Polo Sul. Nesta última viagem, o grupo coordenado pelo professor César Martins continuou sua pesquisa coletando “cápsulas do tempo” antárticas. Em tubos plásticos, as amostras de sedimentos ajudam a mapear temporalmente a evolução do ambiente.
O projeto “As múltiplas faces do CARbono e dos METais no ecossistema antártico” (CARBMET) tem como objetivo compreender os processos químicos, biológicos e geológicos da região. Vulnerável aos efeitos adversos das atividades humanas, a Antártica é um objeto de estudo interessante por suas características singulares: condições extremas para a manutenção da vida, cadeias alimentares simples e baixa biodiversidade. A investigação da distribuição espacial e temporal desses aspectos pode ajudar na compreensão das respostas ecossistêmicas a um cenário de mudanças climáticas.
Em sua segunda edição, a pesquisa, hoje, se propõe a expandir a questão temporal. Além de amostras de solo superficial e água, os pesquisadores passaram a analisar, também, a coluna de sedimentos depositados através das décadas. Chamados de “testemunhos”, esse conjunto de camadas históricas ajuda a reconstruir as condições passadas e nos fornecem um vislumbre da Terra antes da atividade antrópica.
Em entrevista à Agência Universitária de Notícias (AUN), Renata Nagai, pesquisadora vinculada ao projeto, destaca que esse método não é absoluto: “Medimos uma variável para entender uma outra”. Chefe de pesquisa do Laboratório de Proxies Marinhos para o Futuro do Oceano (ProxyMar), a professora Nagai e sua equipe fazem uso de “proxies” para estimar como era o planeta antes de nós. Com técnicas da geologia e da paleoceanografia – a historiografia dos mares –, sua linha de pesquisa dentro do projeto se dedica a avaliar a chegada do plástico no continente. A partir de componentes ambientais conhecidos, joga-se luz àqueles que foram obscurecidos ao longo do tempo.
De onde vem
O projeto foi concebido ainda em 2019, e, desde então, muita coisa mudou. César conta que o CARBMET I se estendeu até 2023 e tinha como principal objetivo estudar a variabilidade que ocorre na Antártica em um espaço temporal curto. Como um dos coordenadores do Laboratório de Química Orgânica Marinha (LabQOM), conduziu o projeto de forma a caracterizar o ambiente do ponto de vista do carbono.
A escolha pela realização das expedições no verão foi intencional. O pesquisador conta que o interesse está na série de modificações que ocorrem no ambiente conforme a temperatura vai aumentando: com a elevação das temperaturas e o derretimento do gelo, o fitoplâncton, grupo de plantas marinhas microscópicas, aflora nas águas, tornando possível a manutenção das redes tróficas. Esse sistema, irrestrito ao círculo polar, sustenta a vida nos oceanos.
Indo além, o professor ressalta: “O período permite entender o que vai acontecer quando a temperatura da primavera chegar à do verão – e quando a do verão passar muito do que vemos hoje”. Quando ocorre o degelo, substâncias antes “presas” são liberadas. Poluentes orgânicos persistentes, como pesticidas, parafinas e subprodutos da combustão, passam a compor novamente o ambiente – ainda que não sejam mais utilizados hoje: “Estamos vendo compostos que foram banidos há 20 anos”.
Com isso, agora, na segunda etapa da pesquisa, novos objetivos e métodos foram incluídos. Além do aprofundamento da abordagem química, os microplásticos entraram no jogo. A escolha de indicadores de alterações ambientais robustos, como a análise isotópica, permite datar e rastrear o movimento de elementos do sistema, enquanto o estudo de compostos químicos “não-alvos”, dos quais pouco se sabe, diversifica a abordagem. Isso, aliado à investigação da presença de polímeros sintéticos na Antártica, permite uma melhor caracterização do material antrópico introduzido e seus efeitos sobre a dinâmica natural.
Para onde vamos
Foi a Profª. Renata quem afirmou que a técnica de coleta de sedimentos empregada é uma forma de se obter as “memórias dos oceanos”. Com início na expedição do verão de 2024 e 2025, a análise dos testemunhos permite entender a história do ambiente em diferentes escalas de tempo: “Cada camada de sedimento depositado conta um período da história do lugar. Quanto mais profunda, mais antiga ela é”, afirma César. É uma forma de se conhecer o passado partindo do presente.
Feita a amostragem, os estratos passam pelo mesmo processo que os outros materiais. O coordenador do projeto explica que, para a análise do carbono, é feito um “chá de sedimentos” com o conteúdo coletado. Nele, as substâncias de interesse são extraídas para, então, serem selecionadas e classificadas. Nesse processo, identifica-se a quantidade de cada composto e se definem as origens da matéria orgânica — se é proveniente de esgoto, se é natural, entre outras origens.
Microplásticos, nesse ponto, são mais simples: todo aporte tem origem no homem. A questão, aqui, é outra. Sobre eles, a pesquisadora afirma: “Faz muito pouco tempo que a gente entendeu que era um problema. E já era um problemão”. Na Antártica, a hipótese é que o aporte tenha origem na atividade das bases de pesquisa ou na popularização do turismo na região. Os testemunhos, então, entram como uma forma de reconstruir o tempo e ver a relação entre a presença humana e o aumento do aporte de plástico. Além disso, são recursos valiosos para se analisar espacialmente a distribuição do material e sua relação de proximidade com os centros de estudos.
A preocupação da cientista se dá diante da presença do homem por trás de grandes barreiras naturais, como o clima e a circulação das correntes marinhas. Como nunca antes, precisamos entender o nosso papel na ocupação da Terra. Afinal, “a gente sempre tem um impacto”.
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