Para além da indústria do entretenimento: Entenda o Feminismo Coreano

O passado e presente do patriarcado coreano e da resistência feminina

Álbum de 30 trinta folhas de pinturas de gênero de Sin Yun-bok, Período Joseon. Imagem: Reprodução

Na Coreia do Sul, a década de 2010 foi marcada pela ascensão da cultura de massa ocidental baseadas nos ideais feministas e do kpop. Ambas denominações previamente reservadas a nichos específicos, ao longo da década, Blackpink e empoderamento se tornaram parte da cobertura midiática cultural. Nessa mesma década, o país passou por uma onda de precarização das condições de vida das classes trabalhadoras, de ultra-misoginia na internet e na política eleitoral e de feminismo popular na internet e nas ruas. Para se compreender a origem do patriarcado coreano e a reação a ele, o feminismo coreano, se destacam alguns momentos históricos: o período da Dinastia de Joseon (1392-1910), Ocupação Japonesa (1910-1945), Redemocratização (década de 1980) e a década de 2010.

A sociedade coreana se formou a partir de diversas influências culturais e ondas migratórias asiáticas. A partir de 1122 a.C., a Coreia foi alvo da expansão territorial e colonização chinesa Han, iniciando uma história milenar de influência cultural e política na região. Esse intercâmbio cultural se manteve durante o restante da história coreana, se destacando a influência do Confucionismo e Neo-confucionismo, sobretudo a partir da Idade Média. No artigo Feminismo e o discurso da sexualidade na Coreia: continuidades e mudanças, Young Hee Shim indica várias formas de controle e padrões comportamentais do patriarcado Neo-Confucionista. Esse sistema foi institucionalizado durante a Dinastia Joseon (1392-1897), antes disso havia relativa paridade normativa entre homens e mulheres.

Segundo Luiz Girão, professor visitante no curso de Letras-Coreano da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), o patriarcado coreano se destaca pelo quão institucionalizado ele é na doutrina neo-confucionista. “Aqui no Brasil, a gente não tem exatamente isso, ainda que sejamos uma sociedade patriarcal, o patriarcalismo é estrutural. […] Não tem isso traçado como o ideário, a não ser na religião”. Ele completa: “Se aqui temos os ideais europeus (patriarcais) como fruto do Período Colonial, na Coreia, antes mesmo da ocupação japonesa, já existia o ideal patriarcalista”.

A Coreia foi ocupada pelo Japão Imperial entre 1910 e 1945, um período marcado pela tentativa de apagamento cultural coreano, aplicação da ideologia japonesa expansionista e industrialista da Era Meiji, rápida e desorganizada urbanização e violência colonial profunda. “Durante o século 20, foram as próprias mulheres que se posicionaram contra a ocupação japonesa, que se conscientizaram frente a esse processo de apagamento cultural, histórico e ideológico. Mesmo que nem todas essas mulheres fossem letradas, como a grande maioria dos coreanos até 1919, havia aí um movimento de reação,  de defesa daquilo que você conhece. Porém, isso não quer dizer que havia um ideal de fato feminista, mas, sim, nacionalista”, conta Girão.

Parte do projeto imperial japonês de colonização, muitas escolas foram implementadas em áreas urbanas na Coreia, seguindo os valores capitalistas e cientificistas da Era Meiji. Girão explica: “As mesmas mulheres que iam para a escola, para aprender a serem melhores mães para os seus filhos, preferivelmente homens, começaram a entender que poderiam fazer mais do que ser uma dona de casa. Elas poderiam, por exemplo, trabalhar no escritório do marido, fazer a contabilidade de casa, entre outras coisas. Elas vão aprendendo novas funções”. Nasce, nesse momento, também uma classe trabalhadora feminina nas cidades. “Elas começaram a trabalhar em fábricas, obviamente ganhando pouco e com longas jornadas, mas elas estavam ganhando o seu dinheiro. Muitas morreram muito jovens, entre 14 e 25 anos, mas elas tinham consciência de que elas estavam provendo para casa”. Nesse momento, surgem movimentos trabalhistas com participação feminina, que perduraram durante a Guerra das Coreias e na resistência aos governos ditatoriais.

Durante o período da Segunda Guerra Mundial na ocupação japonesa (1930-1945), existiu também um fenômeno especialmente violento da história coreana: as mulheres de conforto. Elas foram entre dezenas e centenas de milhares de mulheres coreanas, sudeste-asiáticas e chinesas, que se tornaram servas sexuais ou prostitutas de soldados japoneses. “Nesse contexto, onde nas cidades meninas podem ir para escolas e, no campo, meninas podem seguir o que as mães sempre fizeram ou ir trabalhar nas fábricas, com a perspectiva de irem para a escola também, os soldados japoneses sequestravam ou aliciavam meninas. Com promessas de arranjar um trabalho em outras regiões da Coreia ou até mesmo no Japão, as mães e os pais dessas meninas, com o pensamento patriarcal de ‘minha filha, ela não é um homem, ela é uma boca a mais para alimentar’, vendiam suas filhas”, conta Girão. Outra forma de se conseguir as mulheres de conforto era o sequestro direto de meninas pobres nas ruas, sem consultar os possíveis responsáveis ou ofertas de emprego. Várias antigas “mulheres de conforto” ainda estão vivas e são parte da consciência coletiva coreana. Aliás, seu reconhecimento gerou impasses diplomáticos entre Japão e Coréia entre os anos 1990 e 2010 sendo, até o momento atual, parte importante da discussão nos países asiáticos e em suas comunidades diaspóricas ao redor do mundo.

Apesar de raízes trabalhistas e populares, a presença feminina no Estado coreano tende a ser ligada às mulheres conservadoras. “A partir da década de 1960, ainda sob uma ditadura, mulheres entram na política. Elas vão ocupando lugares políticos e, consequentemente, adquirindo direitos femininos, não feministas. Por causa desse movimento, [que durou] até o final dos anos 70, existe um grupo de mulheres conservadoras na política. Imagino que isso tenha dado certo porque elas não iam batendo de frente com os homens”, afirma Luís Girão. Ao mesmo tempo, existiam outros focos de debate sobre questões de gênero.

Os movimentos de mulheres e o feminismo ganharam mais força principalmente na década de 1980. No contexto da redemocratização do país após uma ditadura, a participação feminina – que já vinha ocorrendo em muitos movimentos trabalhistas e democráticos – se voltou para as questões de gênero e sexualidade. Em 1987, foi fundada a Associação Unida das Mulheres, onde grupos feministas e mulheres na política se juntaram como uma frente ampla lutando por direitos. Diferentemente da participação feminina estatal mais restrita ideologicamente, a Associação “é um grupo feito de vários outros grupos de mulheres com ideias distintas, não apenas conservadoras, para todas buscarem direitos”, diz Girão.

Com o movimento ganhando cada vez mais visibilidade, associado às mudanças internacionais no papel das mulheres, em 2001 foi fundado o Ministério da Igualdade de Gênero. Durante a década de 2000, a institucionalização dos movimentos femininos foi uma tendência na Coreia, relativamente progressista na época. Kim Jisook, em seu artigo O Ressurgimento e a Popularização do Feminismo na Coreia do Sul: Principais Questões e Desafios para o Ativismo Feminista Contemporâneo mostra as dissidências dentro do movimento: “Em meio a essas rápidas e numerosas conquistas jurídicas e institucionais, disputas surgiram entre acadêmicas feministas em relação à institucionalização de movimentos feministas. Assim, os principais movimentos de mulheres têm sido criticados por enfatizar a organização, enfraquecer os movimentos populares, e priorizarem mulheres de origens socioeconômicas privilegiadas.”

Nos últimos nove anos, o feminismo popular tem crescido na Coreia do Sul, sobretudo na internet. Esse reboot vem principalmente de mulheres da chamada Geração Sampo, marcada pelo trabalho precarizado e custo de vida alto no neoliberalismo implementado no país desde a crise financeira asiática de 1997. O termo “sampo” significa “desistência”, em referência à retração do casamento, vida romântica e fecundidade dos jovens coreanos. Também chamada de Geração dos 880 mil won, em referência ao salário comumente baixo de aproximadamente 750 dólares, a crescente disparidade de renda gerou insatisfação profunda na juventude.

Por um lado, isso levou à crescente ultra-misoginia e conservadorismo entre jovens homens sul-coreanos. A comunidade de extrema direita Ilbe, fundada em 2010, na internet, propaga amplamente discursos anti-feministas e de ressentimento contra mulheres, apelidadas por eles de kimchi-nyeo, traduzido livremente para “vadias do kimchi”. Para esses jovens, mulheres se tornaram egoístas, materialistas e irresponsáveis. O grupo Dang Dang We tem uma base ideológica parecida. Conforme eles, o feminismo é odioso e transforma mulheres em pessoas más. A misoginia se tornou uma bandeira política, indo além da regulamentação patriarcal já existente na sociedade coreana.

Apesar dessa insatisfação masculina, a economia rica e precarizada coreana afetou de forma mais grave a população feminina, com o percentual de mulheres em trabalhos mal remunerados sendo o dobro do percentual de homens nessas posições, além dos salários femininos serem, em média, apenas 70% do valor dos salários masculinos. O reboot feminista na Coreia começou em 2015, ano em que “a gente tem internacionalmente o movimento MeToo e na Coreia ocorre em 2016 uma atrocidade, que foi assassinato de uma moça no banheiro público de uma estação de metrô. O assassino estava esperando uma vítima mulher com uma faca, ele queria praticar um feminicídio.”, conta Girão. “Isso resultou num grupo de mulheres, que já não queria mais seguir os ideais neo-confucionistas há muito tempo, que se reunia inicialmente na internet e, depois, passou a se reunir presencialmente. Uma onda de protestos começou, clamando por direitos outros, não apenas aqueles conquistados nos anos 80 e 90, e, nisso, ganharam voz alas mais radicais”.

Apesar da perseguição que o feminismo enfrenta na Coreia do Sul, ele continua crescendo e se diversificando no país. O status de best seller de livros feministas, como Kim Jiyoung, nascida em 1982, e a presença de ídolos abertamente feministas na indústria K-Pop, como Sulli, são sinais de maior aceitação entre jovens mulheres do feminismo. Além disso, o surgimento de correntes como o Movimento 4B faz do feminismo coreano um fenômeno cada vez mais relevante.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*