Transplante e doação de órgãos são desafios à saúde pública

Apesar de crescente, número de doação de órgãos segue abaixo do esperado no Brasil

País é referência em procedimentos de transplantação de órgãos, mas ainda enfrenta obstáculos estruturais e sociais [Imagem: Reprodução/ Fotos Públicas]

Por Beatriz Haddad, Fernanda Zibordi, Mirela Costa, Renan Affonso e Sarah Kelly

Durante a pandemia de COVID-19, houve uma queda significativa nas taxas de doação de órgãos no Brasil. Segundo dados do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), os índices apresentaram redução acentuada durante esse período, com uma queda de 12,7% no número de doadores efetivos no primeiro ano da pandemia. Foi apenas a partir de 2023 que esse cenário se reverteu. 

Segundo o Ministério da Saúde, o ano de 2023 apresentou o maior índice de transplantes no Brasil dos últimos dez anos, com um aumento de 17% no número de doadores em relação a 2022. Foram realizados mais de 6,7 mil transplantes entre os meses de janeiro e setembro, e o número de doações efetivadas ultrapassou os 3 mil. Para Ilka Boin, médica e membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), esse aumento observado no último ano se deu, entre muitos fatores, pelo fato de questões associadas ao transplante e doação de órgãos terem sido mais divulgadas. “Porque a gente fez mais.” Ela menciona as campanhas de conscientização realizadas por diferentes instituições nesse período: “Tem o Instituto Deixe Vivo, a ABTO. É disso que precisamos, o transplante tem que estar na mídia”, explica.

Apesar do crescimento registrado no último ano, houve um processo de desaceleração no cenário de 2024. O número de transplantes ficou abaixo do esperado no primeiro trimestre, com a taxa de doadores efetivos 9% abaixo das expectativas para o início deste ano. Para Olga Schekiera, diretora financeira do Instituto Deixe Vivo, “por mais que a gente trabalhe na conscientização e educação das pessoas sobre o tema e espere que o resultado seja positivo, não há como estimar o impacto efetivo das iniciativas nas doações. Também não conseguimos saber exatamente o motivo da queda das taxas de doação agora no início de 2024”, explica. 

Fatores como a pandemia de COVID-19, questões culturais e religiosas, dificuldades de acesso aos transplantes e falta de conscientização da população contribuíram para essa oscilação nas taxas de doação de órgãos observada nos últimos anos no Brasil.  

Em 1968 foi realizado o primeiro transplante de coração do mundo, na Cidade do Cabo (África do Sul). Apenas seis meses após o marco, o Brasil entrou para a lista de pioneiros no transplante do órgão, com a operação do paciente João Ferreira da Cunha no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Apesar do pioneirismo brasileiro, o sistema de transplante de órgãos conhecido atualmente só foi criado 29 anos depois, em 1997

O Sistema Único de Saúde (SUS) possui o maior programa público de transplantes do mundo – cerca de 87% dos transplantes são feitos com recursos públicos. As normas desse sistema estabelecem a existência de dois tipos de doadores de órgãos: vivos ou falecidos.

O doador vivo pode doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou até do pulmão. De acordo com a lei, cônjuges ou parentes até o quarto grau podem ser doadores, enquanto não-parentes só podem doar mediante autorização judicial. 

O doador falecido é caracterizado por pacientes diagnosticados com morte encefálica, sendo necessária uma autorização familiar para a viabilização do processo. Caso o falecido não tenha sofrido parada cardiorrespiratória, é possível a doação do coração, rins, pulmões, pâncreas, fígado, intestino, córneas, pele, ossos, músculos, tendões, medula óssea, veias e artérias. Os órgãos são destinados a pacientes em aguardo na lista única de espera, que é definida em cada estado pela Central de Transplantes e regulada pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT).  A lista contempla, sem diferenciação, tanto o sistema público quanto o privado, e os pacientes são divididos de acordo com o órgão a ser transplantado, tipo sanguíneo, peso e altura. De acordo com o Ministério da Saúde, aqueles em estado grave podem ser atendidos com prioridade na fila devido à condição crítica. 

Brasil integrado

O Sistema Nacional de Transplantes é um órgão regido pelo Ministério da Saúde, responsável por controlar e monitorar os processos de doação e transplantes realizados no Brasil, bem como captar e distribuir órgãos e tecidos para fins terapêuticos. Em cada estado do país, as Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDOs) regulam as atividades de transplante, a partir do controle e notificação de mortes encefálicas para o sistema federativo. 

O Brasil é referência mundial na rede de transplantes e apresenta o maior programa público do mundo, sendo considerado o 2° maior país transplantador – atrás apenas dos Estados Unidos. Apesar do amparo oferecido pelo SUS durante o processo de doação, o número de pessoas na lista de espera ainda é muito elevado. 

A pandemia

Mesmo sendo um dos líderes em transplantes no mundo, o Brasil assistiu, durante a pandemia, uma queda expressiva no número de doações. Um levantamento da ABTO mostrou que o número de doadores caiu 6,5% no Brasil no primeiro semestre de 2020 em relação ao ano anterior. 

Em entrevista concedida ao Jornal da USP durante os primeiros meses de pandemia, o professor da FMUSP, Luiz Augusto Carneiro D’Albuquerque, explicou que um dos principais motivos pelo declínio nas doações foi o fato de que “pessoas diagnosticadas com covid-19 não podem ser submetidas às operações de transplante, por conta da série de infecções causadas pela doença no organismo”.

De acordo com Olga Schekiera, além da impossibilidade de doação pela contaminação por Covid, outra questão que influenciou na diminuição significativa de doações foi a falta de leitos nos hospitais. “Ainda que a pessoa fosse uma potencial doadora, não existiam leitos suficientes para fazer cirurgias, já que os hospitais estavam todos tomados pelos pacientes de Covid”, afirma. 

Durante todo o período pandêmico, a queda continuou batendo recordes negativos e nos três primeiros meses de 2022, quando a pandemia entrava em seu segundo ano, as doações diminuíram 6,9% em comparação ao mesmo período no ano anterior, de acordo com outro relatório feito pela ABTO

Em algumas regiões do Brasil, a queda no número de doações chegou a 40% durante os anos de pandemia [Imagem: Rawpixel.com/ Freepik]
Apesar da grande diminuição na quantidade de órgãos doados – causado pela alta taxa de contaminação –, o senso de empatia durante a pandemia fez com que as famílias passassem a aceitar melhor o transplante de órgãos de seus entes queridos. No período, a taxa de recusa familiar caiu cerca de 20% comparada à anos anteriores. “Na pandemia e na pós-pandemia o emocional de todo mundo ficou mexido e isso fez com que muitas famílias repensarem suas decisões [sobre a doação de órgãos]”, pontua Ilka Boin. 

Recusa familiar 

 O resultado positivo não durou muito tempo e, apesar da melhora na pandemia e do retorno à normalidade dos hospitais, a recusa familiar cresceu nos últimos anos, se tornando um dos maiores obstáculos na efetivação da doação de órgãos atualmente. De acordo com o último relatório anual da ABTO, em 2023 o número de casos em que famílias negaram a doação de órgãos bateu o recorde dos últimos dez anos. Foram 3.425 recusas, o que representa 24,3% do número total de potenciais doadores no ano. 

A falta de conhecimento, o medo do tráfico de órgãos, a desconfiança na assistência médica e o receio da burocracia são algumas das razões que levam familiares, desolados pelo luto, a negarem a doação dos órgãos de seus parentes. Mayara Fernandes, gestora de comunicação e conteúdo do Instituto Deixe Vivo, pontua que “as famílias costumam ter muitos tabus nos quais acreditam fielmente, como o medo de que a pessoa falecida não tenha um velório e um enterro dignos, o que não acontece”. 

Fatores culturais, sociais e psicológicos também influenciam nessa decisão. A maioria das religiões presentes no Brasil são favoráveis, estimulam a doação de órgãos e justificam a ação como um ato de generosidade. Mesmo assim, alguns dos motivos mais recorrentes na negativa de familiares à doação dos órgãos de seus entes queridos estão relacionados à crenças espirituais. Um exemplo é o pensamento de que milagres divinos podem reverter o quadro de morte encefálica de pacientes.

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2022, mostra que, na época, 67% dos brasileiros maiores de 18 anos eram favoráveis à doação de seus órgãos. Por outro lado, apenas 52% haviam comunicado esse desejo às suas famílias. “Por mais que você se declare doador de órgãos, não tem nenhum lugar para registrar essa intenção oficialmente. Então, é importante que as pessoas comuniquem aos seus parentes a intenção de doar órgãos, caso contrário a doação dificilmente ocorrerá”, diz Olga Schekiera. 

Além disso, Olga alerta para o risco da demora na tomada dessa decisão. “A decisão de devolver o corpo à família ou enviá-lo ao centro cirúrgico para retirar os órgãos deve ser rápida, porque o tempo entre a retirada dos órgãos e o implante no receptor é curto.” Isquemia é o nome dado ao período em que um órgão fica sem circulação sanguínea. Nos casos de transplante de coração, por exemplo, se todo o processo demorar mais de seis horas, sua implantação no paciente receptor fica impossibilitada.

Dificuldades estruturais

Além de fatores externos influenciarem as taxas de transplantes e doações de órgãos no país, o próprio sistema público desses serviços possui problemas estruturais, que acabam por limitar um funcionamento mais eficiente e que atenda um maior número de pacientes. 

De acordo com dados divulgados em tempo real pelo Ministério da Saúde, cerca de 71 mil pessoas esperam por um transplante de órgão no Brasil até junho de 2024. A maior parte desse número – cerca de 68 mil pessoas – são pacientes que aguardam por cirurgias de rim ou de córnea.

Uma das grandes dificuldades do sistema em assistir a procura de órgãos se baseia nas desigualdades regionais, ou seja, em grandes variações do número de doações e transplantes a depender de cada estado brasileiro. Paraná e Santa Catarina lideram o ranking nacional de estados com as maiores taxas de doadores por milhão de população (pmp), de acordo com dados divulgados pela ABTO do primeiro semestre de 2023. Por outro lado, Amapá e Roraima não registraram nenhum doador no mesmo período.

Outra questão, que poderia explicar os problemas de distribuição dos serviços por todo o território nacional, seria a ausência de um repasse financeiro suficiente para o SUS, principalmente durante os ainda recentes anos da pandemia. “O que a gente precisa é melhorar o financiamento”, defende Ilka ao declarar que não houve grandes aumentos de verba desde do ano de 2012. “Houve sim uma tentativa de melhora ao implantar o QUALIDOT [Programa de Qualidade no Processo de Doação e Transplante], mas só poucos serviços conseguiram melhorias significativas, e a maioria deles não são serviços do SUS.”

Apesar de previsões para os próximos anos de aumento orçamentário destinado à saúde pública, o sistema ainda se recupera de um período de sucateamento que, por conta do baixo investimento governamental, prejudicou a eficiência de procedimentos médicos com altos gastos, já que um único tratamento de transplante pode ter a variação de custo de R$ 4 mil a R$ 70 mil reais.

Pesquisas e desenvolvimento científico

Uma boa eficiência e valorização do sistema de doações também é responsável por impactar o desenvolvimento de pesquisas científicas, que possuem papel importante para avanços de conhecimentos em áreas como a medicina, a enfermagem e a odontologia. “Na hora de se fazer a petição de doação, você também pede autorização para a família para que uma parte dos órgãos possa ser usada para fins científicos”, diz Ilka. Por conta dessa associação aos índices gerais de doações, pesquisas podem ser atrasadas ou até mesmo comprometidas.

Existem procedimentos alternativos para lidar com a escassa disponibilidade de órgãos para estudo. Entre os principais, está a utilização de órgãos animais, que não substituem totalmente os humanos, mas são capazes de complementar as pesquisas. É por meio deles também que, após avaliações seguras, iniciam-se novos estudos clínicos, ou seja, desenvolvimento de tratamentos que, posteriormente, poderão ser testados e aplicados em pessoas.

Os avanços nas pesquisas científicas são importantes para que novas técnicas de transplantação de órgãos sejam estudadas e, futuramente, aplicadas. [Imagem: Agência Brasília/ Flickr]
Por outro lado, esforços científicos estão sendo feitos para efetivamente aumentar a oferta de órgãos por formas que não dependam unicamente de doações. Além do desenvolvimento de xenotransplantes – transferimento do órgão de uma espécie para outra –, tentativas de cultivar órgãos humanos por meio de células-tronco e projetos de bioimpressão de tecidos têm obtido investimentos e, consequentemente, resultados promissores para uma futura diminuição na fila de espera por transplantes.

“A alternativa mais viável, atualmente, é o xenotransplante”, afirma Olga a respeito dos novos procedimentos de transplantação em desenvolvimento. Ainda assim, para que esses avanços tecnológicos não se restrinjam a casos particulares, faz-se necessário o estudo especializado do corpo humano, que, por conta da complexidade que simulações e modelos artificiais ainda não são capazes de replicar perfeitamente, depende de amostras de estudo reais.

Ações de conscientização

O cenário de doações de órgãos para transplantes, por depender tanto da qualidade estrutural da saúde pública quanto do apoio da própria população, tem as campanhas de conscientização como uma ferramenta essencial para vislumbrar melhorias no sistema e, consequentemente, salvar mais vidas. 

Sejam elas de caráter governamental ou não, as campanhas de conscientização chamam a atenção para a importância do ato de doar e desmistificam questões sobre o assunto ao tratá-lo de forma sensível e acessível. Olga oferece um exemplo da própria instituição em que trabalha. “Além das iniciativas promovidas pelo Instituto Deixe Vivo, como o podcast Deixe Vivo Talks, que lançamos para contar histórias de pessoas transplantadas, há outros institutos que espalham informações claras e corretas.” Ela conclui que, com esse tipo de ação, famílias passam a ter menos receio da doação de órgãos.

Mesmo com o considerável aumento no número de transplantes no último ano, a inesperada desaceleração do cenário em 2024 aponta para uma necessidade de manter o financiamento e incentivo a essas campanhas. Por meio delas, Mayara declara que há mais chances da população buscar entender melhor o assunto, conhecer relatos de pessoas transplantadas e se sensibilizar. “A transplantação normalmente é tratada com um peso e uma complexidade muito grande, e a popularização do assunto pode ajudar as pessoas a tratá-lo de forma mais tranquila e comum.”

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