
Por Fernanda Real, Gabriele Koga, Leonardo Vieira, Murillo César Alves e Pedro Fagundes
As pandemias persistem na história humana desde antes de começarem a ser documentadas. A Praga de Justiniano é a primeira a ter sido reportada e ocorreu entre os anos de 541 e 544 d. C.. Ela possui sua história confundida com o início do crescimento do Império Bizantino e sua causadora foi a bactéria Yersinia pestis, a mesma que ocasionou a maior pandemia que se tem notícia.
Depois dela, vieram as pandemias de Peste Bubônica, Varíola, Cólera, Gripe Espanhola, Gripe Suína e a Covid-19. Com o mundo conectado e maior facilidade para dispersão de pessoas, agentes patológicos passaram a causar maiores danos e o impacto do coronavírus nos três últimos anos confirma tal fato. Não é equivocado pensar o avanço destas epidemias globais como impulsionador da resiliência evolutiva da espécie humana e, para além disso, na maneira como temos evoluído, em termos biológicos, científicos e sociais.
Este é o ponto central de um estudo publicado na revista Nature. Nele, pesquisadores dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França e Dinamarca, identificaram mutações genéticas que podem ter auxiliado pessoas a sobreviver à pandemia da Peste Negra — doença causada pelo bacilo Yersinia pestis —, que teve seu epicentro na Ásia e se espalhou por rotas comerciais na Europa em meados do século XIV, matando entre 30% e 60% da população europeia.
Na pesquisa foram analisadas 516 amostras de DNA, sendo 318 de Londres, na Inglaterra, e 198 de toda a Dinamarca, durante o período de um século (anos 1.300). Os cientistas identificaram sinais de uma adaptação no gene ERAP2 — responsável pela produção de proteínas que desmembram invasores e mostram os fragmentos ao sistema imunológico, preparando-o para que eles reconheçam os invasores e atuem de maneira eficaz — que ofereceu taxas de resistência entre 40% e 50% maior que os demais, em pessoas com duas cópias idênticas. Quase 700 anos depois, essas alterações genéticas associam-se ao desenvolvimento de doenças autoimunes — quando o sistema imunológico produz anticorpos contra estruturas do nosso próprio organismo, como órgãos ou glândulas, e o ataca.
História e Pandemias
Durante o século 19, Gregor Mendel deu os primeiros passos para o estudo da genética, que se desenvolveu e possibilitou descobertas que alcançaram diversos avanços nunca antes vistos na história da humanidade. O progresso dessa nova área do conhecimento tornou possível, inclusive, explicações para antigas questões científicas.
As doenças são oriundas de agentes patológicos — sujeitos a variações genéticas e mutações — que ao longo do tempo funcionaram como mecanismos de seleção natural. Algumas se propagaram tão rapidamente que se espalharam durante extensas áreas e ameaçaram civilizações inteiras, de modo a atingirem o status de pandemia.
Mercedes Okumura, coordenadora do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, do Instituto de Biociências da USP (IB), comenta que é possível relacionar a história humana com o surgimento de pandemias: “Se olharmos para a história da humanidade, temos os primeiros registros de doenças infecciosas que atingem grande parte de uma população em muitos lugares, especialmente a partir dos últimos 10 mil anos, devido às mudanças causadas pela invenção da agricultura e do pastoralismo”.
A pesquisadora aponta exemplos históricos que embasam essa relação. “Podemos pensar em muitos períodos da história humana nos quais houve intercâmbio importante de doenças entre grupos: a Peste Negra, devido ao comércio entre Eurásia e norte da África no século 14; a lepra na Europa dessa época; a troca de patógenos entre europeus e indígenas durante a invasão europeia ao novo mundo; a febre amarela ligada ao tráfico de africanos escravizados no século 17 e 18; a epidemia de influenza que se beneficiou dos movimentos de soldados ligados à Segunda Guerra Mundial”.
Esse cenário favoreceu os aspectos econômicos e culturais da humanidade. Mas, em meio a tantos benefícios, surgem alguns pontos negativos provenientes dessa globalização em estágio avançado. Entre eles, estão o desequilíbrio ambiental e a facilidade com que epidemias podem se espalhar e atingir partes longínquas do globo em um curto espaço de tempo, evidenciando um verdadeiro desafio à ciência contemporânea.
Tábita Hünemeier aponta que “com a maior comunicação entre continentes e pessoas, qualquer epidemia tem o potencial de se tornar uma pandemia se não for controlada no início”. Contudo, todo este progresso veio ao custo de um enorme desequilíbrio com o meio ambiente.
A pesquisadora enfatiza que, para o surgimento de novas pandemias, o maior risco é a degradação ambiental, já que é uma relação direta. “Quanto mais degradado o ambiente, mais alguns animais se aproximam das cidades. Com eles, novos patógenos podem ser transferidos aos humanos”. Ela alerta, ainda, para o surgimento de novos causadores de doenças: “Com a população crescendo, somado às mudanças climáticas e à deterioração do ambiente, as chances são enormes de novas pandemias acontecerem nos próximos anos”.
A humanidade, mesmo suscetível a novas pandemias, conseguiu alterar os cursos da seleção natural por meio da ciência e da própria cultura. Segundo Okumura, os processos evolutivos continuam atuando nos humanos. Nesse sentido, a tecnologia – com as medidas de saneamento básico, medicamentos, vacinas e outros mecanismos –, podem ser um elemento muito importante nesse processo evolutivo, pois impede que a seleção siga seu curso natural.
A pesquisadora lembra que fatores sociais e culturais também são importantes na evolução. “Usando a infecção da Covid-19 como exemplo, vemos que grupos com piores condições socioeconômicas são mais atingidos pela infecção”.
Avanços Recordes
A pandemia da Covid-19, iniciada em 2020, até hoje impacta a realidade do mundo contemporâneo. Relações comerciais e transnacionais ainda não foram restabelecidas aos níveis pré-pandêmicos.
Se por um lado a globalização aumentou o risco de surgirem novas enfermidades, ela também intensificou as produções tecnológicas nos últimos dois anos, nos quais houve um avanço recorde da ciência. O caso mais claro deste período é a criação, em tempo recorde, do imunizante para a doença. Em média, novas vacinas demoram cerca de 10 anos até serem disponibilizadas para aplicação em humanos. Durante a criação e elaboração de um imunizante, tentativas e erros são comuns nas pesquisas laboratoriais até chegar à terceira fase dos ensaios clínicos, quando ele será, de fato, aplicado em humanos.
No caso da Covid-19, por conta dos esforços globais, de iniciativas estatais e privadas, os imunizantes surgiram em questão de meses, ainda em dezembro de 2020. Naquele ano, o Reino Unido autorizou que seus cidadãos pudessem ser vacinados ao reconhecer que o imunizante da Pfizer/BioNTech atendia aos rígidos níveis de segurança, qualidade e eficácia. O país foi o primeiro a autorizar seu uso.
O tempo recorde também trouxe ao mundo a utilização de uma nova tecnologia. Quando Margaret Keenan, então com 90 anos, e o companheiro William Shakespeare, 81, receberam a vacina, participaram de um momento na história. A vacina trouxe à realidade a tecnologia do RNA mensageiro, que não modifica o DNA humano.
A tecnologia do RNA mensageiro permite que as vacinas sejam produzidas em um menor tempo e em maior escala, mas com um ponto negativo: são mais caras quando comparadas àquelas com o vírus inativado — é o caso dos imunizantes anuais da gripe, distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Vacinas contra Covid-19 da AstraZeneca e da Janssen utilizam uma tecnologia semelhante à da Pfizer, enquanto a Coronavac, produzida em parceria com a Sinovac, vale-se do vírus enfraquecido.
No país, a vacinação foi iniciada em São Paulo, em janeiro de 2021 — pouco mais de um mês após a primeira aplicação no Reino Unido. Desde então, mais de 476 milhões de doses já foram aplicadas, com 82% da população completamente protegida. Antes, o esquema vacinal previa apenas duas doses dos imunizantes — a exceção é a vacina da Janssen, de aplicação única —, mas o SUS aplica duas doses adicionais aos pacientes. Remédios, de via oral e nasal, também seguem sendo testados, mas ainda não foram disponibilizados para o público.
Impactos da Covid-19
O surgimento da Covid-19 trouxe consequências incalculáveis à sociedade. Para exemplificar seus impactos, pode-se falar de relações humanas, cultura, mercado de trabalho, educação, entre outras incontáveis esferas. A crise sanitária deixou uma cicatriz no planeta. Não à toa, termos como pré e pós-pandemia foram inseridos no vocabulário do cotidiano.
Sermos obrigados a permanecer em casa impulsionou o desenvolvimento de tecnologias e a adoção de métodos anteriormente questionados. O ensino à distância, por exemplo, rompeu a barreira da dúvida e — diante de uma catástrofe — transformou-se em certeza. O mesmo vale para o home office, a telemedicina e, até mesmo, os chats de namoro.
Os impactos voltados à saúde de quem já contraiu, ao menos uma vez, os sintomas do vírus também deixaram marcas. Fadiga, falta de ar, deficiência no paladar e olfato, dores de cabeça, perda de memória e insônia são alguns dos efeitos gerados pelo agente infeccioso na parcela da população afetada.
De acordo com Mercedes, a análise do quadro de óbitos por Covid-19 pôde indicar certos fatores determinantes para a mortalidade dos indivíduos. “Sabemos, por exemplo, como determinados alelos (tipos ou variantes de genes) podem estar relacionados a cenários mais leves ou mais graves de infecção. Essa lógica pode ser estendida para outros patógenos”.
No entanto, na genética, essa influência tende a inexistir. Diferentemente da peste bubônica, a Covid-19 teve como esmagadora maioria de suas vítimas a população com mais de 60 anos. No Brasil, até outubro de 2021, 67,9% das mortes relatadas estavam nesse intervalo de idade.
Faça um comentário