Arborização na cidade de São Paulo denuncia processo de conurbação desenfreada e sem planejamento

A conurbação, processo de crescimento de cidades que acaba por nublar as fronteiras municipais, afeta diretamente o planejamento de vegetação na maior metrópole da América Latina; projetos sustentáveis visam reverter este problema

Árvores do Campus da USP Butantã, que possui uma floresta urbana dentro da universidade e é uma das áreas mais arborizadas de São Paulo – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Por Gustavo Assef, Karolina Monte, Matheus Nistal, Renato Brocchi e Thiago Campolina

São Paulo, a maior metrópole brasileira e a quinta maior do mundo, é o grande centro urbano do Brasil. Com o surto cafeeiro e com a industrialização do século 20, a cidade sofreu intenso e desorganizado processo de urbanização, ao receber milhões de novos habitantes, oriundos de outros estados e países. 

Se isso trouxe muitos avanços, principalmente econômicos, o preço a pagar foi o desmatamento de parte considerável das áreas verdes para a expansão das regiões de moradias, comércio e, principalmente, indústrias.

De um lado, a urbanização colocou de vez São Paulo como o centro econômico do Brasil, onde os principais negócios são fechados e os escritórios das maiores empresas do mundo montam filiais. Do outro, o avanço econômico do capitalismo gera interesse em alcançar avanços ainda maiores, o que coloca em cheque a saúde da cidade e de sua população.

Apesar da presença de grandes parques, essas áreas não atendem a necessidade de toda a sociedade, que sofre com problemas ligados à saúde mental e ao bem-estar de maneira geral.

Uma distribuição desigual

A população urbana das cidades brasileiras tem crescido em um ritmo intenso nas últimas décadas. Na última Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios), de 2015, o IBGE indicou que 84,72% dos brasileiros vivem em zonas urbanas, enquanto em 1950 eram 36,16%.

No mesmo período, na América Latina, as cidades com mais de um milhão de habitantes passaram de 8 para 56. A construção e expansão dessas cidades normalmente não se dá de uma maneira planejada ou democrática, e impacta cada vez mais pessoas. Nesse sentido, as questões de justiça social — já muito presentes em discussões políticas — também têm ganhado força quando o tema é meio ambiente.

A interferência humana no espaço geográfico atinge com maior força as pessoas pertencentes às camadas sociais mais vulneráveis, e que sofrem com o processo de racialização, isto é, que são subjugadas por estereótipos vulgares designados à força, e sem bases comprobatórias de sua veracidade biológica, fenotípica ou étnico-cultural. 

Quem mais sofre com este processo de racialização são as pessoas da periferia da cidade, que possuem um acesso mais intrincado às regiões centrais ou mais arborizadas de São Paulo.

 Nos mapas abaixo é possível ver o contexto da geografia urbana de São Paulo, que, na região central e em áreas nobres da cidade possui um alto índice de arborização, enquanto áreas de menor desenvolvimento, as periféricas, têm um avanço arborístico evidentemente menos desenvolvido.

No primeiro mapa, o índice de cobertura arbórea da cidade de São Paulo. No segundo, o índice humano de desenvolvimento de cada região da cidade. Em vermelho os menores índices [Imagens: Reprodução/URBIT]
No primeiro mapa, o índice de cobertura arbórea da cidade de São Paulo. No segundo, o índice humano de desenvolvimento de cada região da cidade. Em vermelho os menores índices [Imagens: Reprodução/URBIT]

Como diz a música dos Racionais MC’s, “o mundo é diferente da ponte pra cá”. Em um passeio pela cidade saindo da Praça da Sé, as árvores começam a virar imagens cada vez mais escassas se rumamos em direção a zona sul da cidade. Após a luxuosa região do Morumbi, o cinza toma conta da paisagem. É importante notar que, após os primeiros bairros periféricos, o espaço geográfico novamente se transforma em verde: são as regiões rurais de São Paulo, nas quais a selva de pedra ainda não chegou com toda a força.

A forma desigual com que os parques, a arborização viária e demais áreas de contato com a natureza na cidade foram criadas ou preservadas nos indica como a cidade cresceu. Entre os bairros planejados e loteados pela Companhia City, passando pelas vilas operárias e também pelo crescimento das favelas, diversos processos humanos interferiram nas áreas verdes paulistanas, enquanto elas, por sua vez, também influenciam na vida humana dentro do ambiente urbano — particularmente na saúde.

Impactos na saúde pública e na economia

Conversamos com Maria da Penha Vasconcellos, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), afirma ser fundamental viver em uma cidade verde, pois “a gente faz parte da natureza, então, quanto mais nos afastamos dela, maior se torna nossa perda enquanto ser humano.”

Segundo dados de 2017, São Paulo conta com 113 parques, o que até soa como um número expressivo. Contudo, a experiência de ir a um parque não pode se restringir ao Ibirapuera ou ao Villa-Lobos. Apesar de também serem necessários, esses lugares não são totalmente acessíveis à boa parte da população, que muitas vezes é obrigada a se deslocar por grandes distâncias para deles usufruir. Faltam parques mais próximos das pessoas, dos bairros, onde é possível relaxar e conviver mais com a natureza.

A FSP tomou uma medida nesse sentido, liberando o acesso de seu jardim, de modo a prover à população do bairro de Cerqueira César, onde está localizada, um espaço livre e aberto ao lazer. O local é estratégico, já que a região carece desse tipo de lugares, onde existe o intenso fluxo de carros e ônibus na Avenida Doutor Arnaldo, responsável por uma alarmante poluição sonora e de material particulado.

Poder viver em uma cidade arborizada diminui, inclusive, os gastos com saúde pública. A professora Maria da Penha Vasconcellos ressalta que “precisamos ter áreas arejadas, senão os pulmões vão ficando com problemas. Além disso, é preciso haver um equilíbrio no bem-estar emocional, o que é difícil de alcançar quando não se pode ver o céu, o sol, o horizonte”. Trata-se de planejar novas construções e replanejar as já existentes de modo a permitir uma maior arborização, o que futuramente teria reflexos positivos visíveis nos cofres públicos.

Os benefícios da arborização em regiões metropolitanas são amplamente descritos pela literatura científica e muito bem sentidos pela população. Contudo, pouco se comenta sobre a importância da vegetação para a produção econômica, e sua distribuição igualitária pela cidade.

O professor do Instituto de Biociências (IB) da USP Marcos Buckeridge destaca, em artigo publicado em 2015 na revista Estudos Avançados do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA), que “as plantas são responsáveis pelo giro da economia no planeta”.

No artigo, Marcos cita estudo de 2014 sobre cidades americanas: das que participaram da pesquisa, 89% foram classificadas como “cinzas”, com baixa taxa de arborização entre vias, parques e jardins, enquanto apenas 11% foram classificadas como “verdes”. Essas contavam com maior foco em justiça social, enquanto as cidades cinzas eram mais voltadas à produção desenfreada.

Ainda no mesmo artigo, Marcos aponta que São Paulo tem se comportado de maneira cinza quanto ao seu planejamento e execução urbana. Mas escreve que é possível mudar, “deixando de ser tão cinza e ao mesmo tempo não abrindo mão dos ganhos econômicos”.

Para isso, o professor aponta para o cultivo de espécies de árvores que já estão nas florestas e matas no entorno do perímetro urbano. Assim, se criaria corredores ecológicos que abrigariam a biodiversidade de espécies da região, integrando a vida urbana com o ambiente ecológico ao seu redor.

Dentro do perímetro metropolitano, têm crescido também atividades de agricultura social, que são benéficas para a geração de renda, empregos, nutrição e integração social de comunidades, segundo dados do Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), que tem como objetivo equilibrar os benefícios e ônus do processo de urbanização.

E qual o destino mais ecológico para a madeira de nossas cidades?

O campus Butantã da USP, na zona oeste de São Paulo, é uma das partes mais verdes nesta região do município que, por si só, já é a zona urbana mais arborizada da cidade — só é ultrapassada por áreas de preservação, como a Serra da Cantareira. No campus, árvores nativas — como as da Reserva da Mata Atlântica — dividem o espaço (e competem) com árvores exóticas e invasoras, como a Leucena e a Tipuana.

Foi neste cenário que surgiu o projeto Poda Lab, a partir do trabalho de professores a alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Os estudantes de design dessa unidade queriam aprender a trabalhar com a madeira de poda, que, segundo eles, parece tão abundante e desperdiçada. Assim, com a ajuda do edital “Desafio USP: Cidades Sustentáveis”, projetos passaram a ser organizados dentro (e, posteriormente, fora) do campus para a criação de móveis a partir de galhos e troncos podados ou caídos.

Rua do Matão na Cidade Universitária da USP. À direita, parte da Reserva da Mata Atlântica. [Foto: Marcos Santos/ USP Imagens]
“Conseguimos, com a Prefeitura da Cidade Universitária e com as prestadoras de serviços de poda, que uma parte dos resíduos acima de 15 centímetros de diâmetro fosse levada para um pátio da Prefeitura para que pudéssemos prospectar possibilidades de uso”, conta a professora da FAU Cyntia dos Santos Malaguti de Sousa, uma dos coordenadores do projeto, sobre as primeiras ações do Poda Lab.

Essa prospecção é essencial para o trabalho posterior. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP (IPT-USP) ajuda o Poda Lab com a identificação das espécies, suas características e propriedades; assim, as mais propícias podem ser usadas nos mais diversos projetos. Mas esse uso de madeira de poda não é a regra na cidade de São Paulo: uma parte dos resíduos menores cortados das árvores são triturados e mandados para pátios de compostagem, enquanto a maior parte da madeira acaba queimada ou em aterros sanitários.

O custo mensal com podas de árvores na cidade em 2019, como indicado no site do Poda Lab a partir de levantamentos do portal 32xSP, foi de R$4,6 milhões — isso na capital do estado que mais consome madeira serrada tropical do país, como também aponta o mesmo site, com informações da International Tropical Timber Organization.

Por isso, a inovação de projetos como o Poda Lab dão ao verde das cidades um uso inteligente e ecológico, que poderia substituir as toras serradas em outras regiões e levadas por longas distâncias até São Paulo. O que não vem sem desafios: “A arborização [urbana] não foi pensada com essa possibilidade de aproveitamento posterior: ela é muito diversa, heterogênea e, por outro lado, tem dimensões pequenas na poda”, ressalta Cyntia.

O meio urbano, com seus calçamentos, suas ruas e suas fiações, pode ser desafiador para o desenvolvimento de muitas espécies, que acabam tendo troncos mais curtos e copas mais abertas que suas contrapartes em áreas rurais ou matas virgens. Também costumam ser mais jovens e ter maior umidade em sua madeira, dificultando seu manejo. Já o lenho que “vem de florestas nativas tem um diâmetro muito maior, e, normalmente, a gente trabalha com a madeira já serrada” em pranchas, lembra o professor da FAU, Tomás Queiroz Ferreira Barata, um dos coordenadores do projeto.

Nada disso, entretanto, impede a utilização da madeira de poda: esse tipo de iniciativa já vem sendo feito tanto internacionalmente quanto no Brasil. Cyntia e Tomás apontam que, apesar de os grandes feitos nessa área serem dos Estados Unidos, o Brasil tem seus casos exemplares.

O Projeto Reinvente, da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) do Rio de Janeiro, por exemplo, funciona desde novembro de 2017 fazendo algo muito próximo daquilo que objetiva o Poda Lab: cria mobiliário urbano com a madeira de poda das árvores cariocas com risco de queda. Tomás diz que esse é mesmo o caminho — propiciar um uso efetivo da vegetação urbana, vinculando as unidades de processamento de madeira a estúdios de design e arquitetura.

Cyntia e Tomás também salientam a importância de retomar a arborização de nossas metrópoles com plantas nativas em vez de invasoras. Assim, as florestas urbanas podem florescer sem preocupações, nos habitats que lhes são mais propícios — e, quando precisarem ser podadas, podem virar matéria para mobiliário urbano, fechando um ciclo ecológico de reutilização dentro da própria cidade, e provando que a vegetação, além de ser um bem em si mesmo, pode servir às selvas de pedra de modo sustentável.

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