De cada dez profissionais na linha de frente do combate à Covid-19, ao menos seis estão em sofrimento mental. Esse índice é explicado em grande parte pela sobrecarga de trabalho provocada pela pandemia, associada ao medo da contaminação pelo coronavírus e agravada por problemas organizacionais das instituições de saúde, como a falta de leitos para internação e de equipamentos de atendimento e segurança individual. Os resultados são do estudo “Estressores psicossociais ocupacionais e sofrimento mental em trabalhadores de saúde na pandemia de COVID-19”, publicado e premiado pelo Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein.
A pesquisa analisou o nível de sofrimento mental de 437 profissionais de todo o Brasil, via formulário online, que atuaram entre abril e junho de 2020 no atendimento a pacientes com suspeita ou confirmação de Covid-19. Predominaram nas respostas a equipe de enfermagem (65%), entre técnicos e auxiliares de enfermagem e enfermeiros; e as mulheres (71%), compatível com o fato de elas comporem a maior parte da força de trabalho do setor da saúde.
Dentre as conclusões do estudo, a faixa etária de até 40 anos sente mais o impacto de situações estressantes como a pandemia, em grande parte devido à inexperiência; e as mulheres apresentam casos mais graves de burnout (esgotamento profissional), ansiedade e depressão que os homens, o que pode ser explicado pela menor remuneração e valorização no mercado de trabalho, somadas à jornada doméstica e familiar, imposta socialmente a elas e intensificada durante a quarentena.
Em relação às condições de trabalho, o estudo destaca três fatores que aumentam de forma significativa as chances de adoecimento mental: a alta exigência (grande demanda física e mental), jornada semanal igual ou superior a 60 horas e baixo apoio social dos colegas e supervisores. A alta exigência, como ter que manobrar o paciente em alguma posição, monitorar seus índices vitais ou lidar com uma parada cardíaca, representa um risco de quase 150% de sofrimento mental.
À medida que o coronavírus se alastrava, as jornadas de trabalho dos profissionais da saúde ficaram mais longas para cobrir as baixas na equipe, de mortes a afastamentos, considerando que a suspeita ou confirmação da doença exige quarentena de 15 dias.
“Não se forma enfermeiro e médico de uma hora para outra, e é um longo processo para também capacitá-los na atuação de um trabalho de alta exigência que é atender os pacientes em UTI ou centro cirúrgico”, explica Daniela Lourenção, uma das autoras do artigo, pós-doutora pela Escola de Enfermagem da USP e pesquisadora da qualidade e avaliação dos serviços de Enfermagem e da saúde dos trabalhadores de Enfermagem.
Lourenção também afirma que o baixo apoio social, afetando 53% dos participantes do estudo, não é de hoje. “Muito devido à alta carga de trabalho – está todo mundo trabalhando muito, você não tem tempo para dar apoio aos colegas. Todos estão muito estressados.” O apoio social é importante para minimizar o medo diante do risco de adoecer ou de infectar conhecidos e para aprender a conviver com a dor da morte de pacientes e colegas de trabalho. Algumas opções são a meditação e a formação de grupos de conversa presenciais e virtuais.
Além dessas questões, há uma particularidade do contexto da saúde brasileira: a precarização das relações trabalhistas, especialmente entre os enfermeiros, que até hoje não têm piso salarial nem limite de jornada. Tentando mudar esse cenário, o projeto de lei 2564/2020, aprovado pelo Senado no ano passado, institui o piso salarial do setor de enfermagem. No momento, o PL está em tramitação na Câmara dos Deputados.
“Na enfermagem, a maioria trabalha 44 horas semanais, às vezes tem duplo vínculo, e isso acaba aumentando muito a carga de trabalho”, diz Lourenção. Na pesquisa, metade dos participantes tinha uma jornada de 40 a 59 horas e quase 40% trabalhava em duas ou mais instituições.
E a política de condução da pandemia do governo federal agravou esse cenário. “Gerou medo e especialmente insegurança. Revolta, muitas vezes”, afirma a pesquisadora se referindo ao negacionismo de autoridades, como o do presidente da República. “Levou a população a acreditar em determinados tratamentos e a exigi-los, o que gerou uma sobrecarga ainda maior nos profissionais.”
Diante desses resultados, a pesquisa diz ser “urgente” mapear os serviços de saúde com mais riscos para o trabalhador e elaborar políticas organizacionais permanentes de saúde e segurança no trabalho, promovendo também a prevenção do desgaste emocional. “Afinal, quem são os pacientes da saúde brasileira?”, questiona Lourenção. “Todos nós, cidadãos brasileiros”.
É preciso considerar também que os profissionais precisarão lidar com a demanda reprimida de pacientes com outras necessidades assim que houver a diminuição das ondas de contaminação e internação provocadas pela variante ômicron — e outras que possam surgir no futuro. “Então ainda estamos com sobrecarga de trabalho, e serão necessários muitos enfermeiros ainda para lidar com possíveis ondas do coronavírus.” Por isso, Lourenção classifica os profissionais da saúde como sendo a “segunda vítima da pandemia”.
O estudo “Estressores psicossociais ocupacionais e sofrimento mental em trabalhadores de saúde na pandemia de COVID-19” é fruto da parceria do grupo de pesquisa Estudos Sobre a Saúde dos Trabalhadores de Enfermagem, do programa de pós-graudação em Gerencimanento de Enfermagem da USP, com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Também participaram da pesquisa João Silvestre Silva-Junior, Arthur Arantes da Cunha, Silmar Maria da Silva, Renata Flavia Abreu da Silva, Magda Guimarães de Araujo Faria, Vivian Aline Mininel, Mirian Cristina dos Santos Almeida, Patrícia Campos Pavan Baptista, liderados pela professora Cristiane Helena Gallasch.
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