Morte de indígena por Covid-19 expôs riscos de “ideologia genocida” do governo

Amoim Aruká era o último guerreiro do povo Juma e morreu em 17 de fevereiro; ancião sobreviveu à massacre em 64 e era símbolo da resistência indígena, explica pesquisadora

Aruká (Foto: Odair Leal/Amazônia Real, 2014)

Aruká Juma, de cerca de 86 anos, faleceu em 17 de março na UTI de um hospital de Rondônia. Vítima da Covid-19, ele era o último guerreiro do povo Juma. A tragédia que se abateu sobre o ancião, sobrevivente de um massacre que dizimou 60 membros de sua etnia em 1964, expõe o descaso do governo com a população indígena antes e durante a pandemia, afirma Marta Rosa Amoroso, professora de antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e especialista em etnologia indígena.

O ancião adoeceu em janeiro, foi internado brevemente em Humaitá (AM) e, em seguida, teve alta, conta Amoroso. Foi novamente internado dias depois num município vizinho, mas devido à falta de leitos de UTI na região, foi transferido para um hospital em Porto Velho, no estado vizinho. Para a pesquisadora, tratou-se de tragédia anunciada: não faltaram alertas de associações e entidades especializadas sobre os riscos do vírus para as populações que vivem isoladas, como os Juma, já vulnerabilizadas por políticas de atendimento historicamente deficitárias.

“A comoção das lideranças e parceiros dos povos indígenas pela morte expõe graves impasses que afetam os indígenas na pandemia, e antes dela, os riscos da ideologia anti-indígena e genocida do governo atual”, afirma Amoroso. As organizações e profissionais da saúde alertaram as autoridades para a necessidade de elaboração, no início de 2020, de um plano nacional de atendimento que desse conta da diversidade de situações em que esses povos vivem, o que jamais aconteceu. Simplesmente não houve uma política de atendimento articulada, uma resposta urgente que os cuidados à saúde indígena exigiam. A morte se somou assim a centenas de mortes de anciãos que perderam a vida na pandemia por não terem acesso ao atendimento médico hospitalar a tempo.

A morte de Aruká trouxe comoção, revolta e a violência simbólica que circunda o apagamento histórico a que povos indígenas são frequentemente submetidos no país.

“À ele está associada, pelas lideranças indígenas do sudeste da Amazônia, a imagem da resistência de um povo ao genocídio. Era o último homem de sua comunidade, último falante da língua juma, do tronco tupi-kawahiwa. Sobrevivera aos 15 anos de idade ao assalto genocida em 1964 encomendado pelos comerciantes da sorva e castanha da cidade de Tapauá, que avançavam sobre áreas ocupadas pelos Juma no rio Assuá, na calha do rio Purus. No assalto, morreram por volta de 60 pessoas da comunidade Juma”, conta Amoroso.

Os responsáveis não foram a julgamento e as investigações, arquivadas. Aruká e os seus isolaram-se. O indígena conheceu a alegria de ter filhas e a tristeza de perder sua mulher. Viveu parte de sua vida na Terra Indígena Uru-eu-wau-wau, para onde fora transferido pela Funai, e viu netos e netas nascerem ali. Mas sonhava em voltar para sua terra:

“Em 2012, Aruká havia retornado à Terra Indígena Juma com seu pequeno grupo, e todos celebramos essa vitória, conquistada pela luta de uma vida inteira”, compartilha a indigenista.

Cerca de 584 indígenas morreram pela Covid-19 em território brasileiro até 2 de março de 2021, segundo dados da Plataforma de Monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19), baseados em números da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). As regiões com maior número de mortes são Mato Grosso do Sul (85), leste de Roraima (53), Xavante (50) e Alto do Rio Solimões (47).

Estas regiões, bem como as do interior sul, rio Tapajós, alto do Rio Negro e alto do Rio Solimões também apresentaram mais de 2 mil casos confirmados da doença, cada. Os números, na prática, podem ser maiores: os pesquisadores alertam para a alta subnotificação e dificuldade para obtenção de dados precisos.

Em agosto de 2020, a OMS (Organização Mundial de Saúde) emitiu alerta sobre índices de letalidade da Covid-19 superiores entre os povos indígenas, em relação ao restante da sociedade, e o avanço da doença entre a população indígena em toda América do Sul.

O mesmo alerta já havia sido feito em julho pela OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), braço regional da OMS, que destacou também fatores de risco que intensificaram a letalidade da doença entre indígenas, como acesso precário aos sistemas de saúde, água e saneamento, além de desnutrição. A organização alertou ainda sobre a heterogeneidade dos povos indígenas na região e a necessidade de estratégias distintas de combate do vírus entre populações em áreas urbanizadas ou isoladas, migrantes ou em aldeias.

Para fiscalizar as ações de autoridades entre os indígenas durante a pandemia, diversas iniciativas surgiram desde o início da crise sanitária. Uma delas, coordenada por Amoroso no Centro de Estudos Ameríndios da FFLCH, envolveu a criação da campanha de mobilização “Povos indígenas frente à covid-19”, com participação de pesquisadores da área:

“A campanha identifica, de um lado, um cenário político marcado pela omissão do Estado diante da elevada taxa de letalidade da doença entre os indígenas; e, de outro, o movimento indígena e suas organizações, que vêm reagindo à situação de forma contundente e convocando seus parceiros à ação conjunta. O objetivo é acompanhar e documentar o desenrolar da pandemia entre os povos indígenas, de modo atento a violações de direitos, diante do risco de um iminente genocídio. Também desejamos dar visibilidade às perspectivas e soluções locais, além de construir um espaço de memória para as vítimas da covid-19.”

Uma área de memorial às vítimas dos vírus entre os indígenas compõe o website da iniciativa. Para os envolvidos, trazer atenção para a tragédia destas mortes segue sendo uma missão prioritária, bem como cobrar das autoridades para que outras não continuem a acontecer.

“A mobilização civil pela garantia do direito constitucional dos povos indígenas à saúde se faz necessária como nunca. Essa urgência decorre da paralisia deliberada e criminosa do atual governo em garantir direitos fundamentais e promover políticas públicas efetivas para um dos segmentos mais vulneráveis da sociedade brasileira”, finaliza Amoroso.

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