Os impactos do ensino remoto para o ensino superior brasileiro

O ensino superior precisou se adaptar ao novo normal [Imagem: Pixabay]

Por Edson Junior, Mariana Carraro, Natasha Teixeira, Ramana Rech e Sofia Kassab

A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi a primeira instituição de Ensino Superior no Brasil a anunciar seu fechamento por conta do novo coronavírus em 12 de março de 2020. Algumas universidades ainda tentaram resistir à suspensão das atividades presenciais com medidas mais brandas, como determinar quarentena obrigatória para os membros que tivessem viajado para o exterior.

Porém, em poucos dias, o Sars-Cov-2 avançou pelo país e, ao final de março, grande parte dos estudantes brasileiros passaram a viver o ensino remoto compulsoriamente. Houve, também, aqueles que tiveram as aulas suspensas imaginando que o novo coronavírus desapareceria logo.

As adaptações do Ensino Superior presencial para o remoto não incluem apenas repensar a didática, mas também as condições socioeconômicas desiguais de seus estudantes. Além disso, a transformação abrupta das aulas trouxe consequências tanto para a saúde mental quanto física dos membros universitários.

Como o ensino superior se adaptou à pandemia?

Assim como diversos setores da sociedade, as universidades tiveram que adaptar suas atividades à nova realidade, aderindo ao ensino remoto. 

No campo das universidades públicas, algumas aderiram ao ensino remoto de forma rápida. A Universidade de São Paulo (USP) teve uma realidade diferente para cada um de seus institutos, já que, por terem independência entre si, alguns iniciaram suas atividades online logo após o decreto do ensino remoto, enquanto outros demoraram mais de um mês, como é o caso do Departamento de Artes Cênicas (CAC) da Escola de Comunicações e Artes (ECA). Ocorreu dessa mesma forma com a Unicamp. Outras, tiveram uma realidade distinta. 

Em diferentes regiões do país, algumas faculdades decidiram não adotar o ensino remoto e esperar a Covid-19 passar. Mas, após analisar que a volta presencial não ocorreria tão cedo, iniciaram as aulas a partir do segundo semestre. Como exemplo dessas, há a Universidade Federal de Alagoas (UFAL), a Universidade Estadual de Maringá (UEM), a Universidade Federal do Pará (UFPA) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

Enquanto isso, nas universidades privadas, a situação apresenta diferenças. Alguns exemplos indicam que muitas delas tiveram uma adaptação mais rápida ao ensino remoto. 

A Fundação Getúlio Vargas (FGV) fez uma semana de recesso em março, logo após o início da pandemia, para a organização dos professores e alunos e, depois disso, já iniciou as aulas online. O Centro Universitário Tiradentes (UNIT), rede particular com unidades no Nordeste, também voltou rapidamente e utilizou-se do recurso online para unir turmas de estados diferentes numa mesma sala virtual. Por fim, a Universidade Presbiteriana Mackenzie contou também com resoluções constantes que explicavam aos alunos como as aulas iriam funcionar e períodos sem aulas para que os professores pudessem decidir novas metodologias em conjunto. 

Em entrevista para a Agência Universitária de Notícias (AUN), Carlota Boto, professora da Faculdade de Educação (FE) da USP, comenta sobre as diferenças que existem entre as realidades das públicas e privadas. Ela explica que instituições privadas, como FGV e Instituto de Ensino Insper, dispõem de mais recursos humanos e materiais para se adaptar ao ensino remoto que muitas das públicas, além de uma quantidade menor de alunos que não têm acesso a computadores ou bons planos de internet para assistir às aulas. Porém, ela reconhece que essa não é uma regra geral: Nem todas as instituições particulares têm essas características. Muitas delas também possuem alunos com dificuldades financeiras”.

Sobre isso, Carolina Alves, 20 anos, estudante de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Estadual de Londrina (UEL), contou à AUN que existem diversas disciplinas na grade que exigem que os alunos lidem com programas para montar projetos, como AutoCAD e SketchUp, mas não são todos os alunos que possuem notebooks próprios ou notebooks que aguentem esse tipo de programa. Por isso, a Universidade tem um laboratório de computadores (com esses programas já instalados) disponíveis aos alunos. 

Porém, durante a pandemia, sem acesso a esse laboratório, muitos alunos não conseguiriam acompanhar essas disciplinas. Carolina contou que a Universidade “começou a fazer pesquisas para ver se todos os alunos tinham os aparelhos adequados, para ninguém sair defasado”. Segundo ela, a UEL queria “ter segurança e certeza que todos os alunos iriam ter acesso a essas aulas” antes de voltar. 

A USP também teve que pensar em medidas para ajudar seus alunos. Ela disponibilizou chips que permitem o uso das ferramentas online, assim como instituições como UFAL, Unicamp e UFPA. Mas essas ações foram muito criticadas por não fornecer nem perto da quantidade de internet necessária às atividades.

Os estudantes moradores do Conjunto Residencial da USP (CRUSP) também enfrentam problemas na pandemia, principalmente a parcela mais vulnerável. O acesso à internet no CRUSP de forma definitiva não era uma realidade até meados de janeiro deste ano, quando foi implementada. Antes disso, durante 2020, a universidade disponibilizava modens de internet para os que precisavam. 

Para além da disponibilização de chips, a especialista Carlota Boto explica que algumas universidades vêm tomando medidas para reduzir as dificuldades de acompanhamento, pensando especialmente nos alunos que não têm espaço próprio para estudar em casa. Ela dá o exemplo da FE da USP que grava as aulas para que os alunos também possam assisti-las em outros horários.

Universidade de São Paulo [Imagem: Imagens USP]

Quais foram os impactos econômicos para os estudantes?

A pandemia foi, também, um grande obstáculo para a permanência estudantil nas universidades pelo aspecto financeiro. Conforme dados coletados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em questionário aplicado aos inscritos do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), um em cada três candidatos às universidades não possuem acesso à internet.

Muitas outras barreiras impedem ou dificultam o ensino remoto para os estudantes do ensino superior, como falta de computadores, conexão instável, ou necessidade de dividir o espaço de estudo com outros membros da família. Esses aspectos dificultaram o aprendizado e a continuidade dos alunos socialmente mais vulneráveis, causando um grande desfalque. Aqueles que não recebem nenhum tipo de auxílio que facilite esse acesso podem até ficar impossibilitados de aprender por meio do ensino remoto.

Além disso, por causa dessas dificuldades e por questões financeiras das empresas, muitos estudantes enfrentaram problemas para permanecer ou conseguir novos empregos ou estágios. Clara Liz estudava Ciências Biológicas na Universidade Anhembi Morumbi (UAM) e, para conseguir bolsa de estudos, trabalhou durante um ano no call center da Laureatte, rede à qual a UAM pertence. No entanto, durante a pandemia, a empresa realizou cortes, resultando na demissão da estudante, o que a levou à necessidade de solicitar transferência para outra instituição financeiramente mais acessível.

Clara afirma que essa transferência foi dificultada pela Anhembi Morumbi e relata: “Foi, simplesmente, o maior estresse que eu passei na minha vida. Eu fiquei dois meses para conseguir minha documentação, ainda não estou estudando por conta dos atrasos da Anhembi”. Sem conseguir se comunicar por nenhum meio com a faculdade em que estudava, a universitária perdeu parte do semestre da nova faculdade, que começou antes de ela conseguir finalizar o processo de transferência.

Outros alunos do ensino superior foram obrigados a buscar empregos informais ou autônomos para subsidiar seus estudos ou por necessidade básica. Com menos disponibilidade e, possivelmente, menos disposição, os estudos são afetados e podem acabar em segundo plano. Ainda assim, muitas faculdades têm sido pouco flexíveis. Nas particulares, está difícil negociar e conseguir desconto na mensalidade, como denunciou reportagem do G1

Já nas públicas, as dificuldades vão além dos estudos. Na Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, o Restaurante Universitário está fechado em razão da pandemia e os estudantes não sabem se será mantido o auxílio-alimentação.

Como os professores lidaram com o ensino remoto?

Muito se fala sobre como os estudantes estão lidando com o ensino remoto na pandemia, mas eles não são os únicos com dificuldades de se adaptar. Os professores também vêm enfrentando diversos problemas. 

Uma das dificuldades é a técnica. Carlota pontua que, “sobretudo os professores das gerações mais velhas”, que são a maioria nas universidades, “têm dificuldade em lidar com as plataformas do ensino remoto, com a gravação dos conteúdos, com os recursos tipo google classroom e com o sistema moodle”. Ter que adaptar as aulas ao universo online não é uma tarefa fácil nem para os que são mestres em tecnologia. Foi necessário aprender a usar novas plataformas, pensar em novos jeitos de manter a atenção dos alunos, além de adaptar as avaliações. “Mas quem ajuda muito os professores nesse sentido são os próprios alunos.”

Porém, uma das questões que os docentes mais comentam é a falta de interação e vínculo com os alunos. Os professores, que estavam acostumados com as salas lotadas, com as expressões faciais e dúvidas dos alunos e, com uma lousa conhecida, se depararam com uma tela de computador como principal instrumento de interação e transmissão de conhecimento.

Em entrevista à Agência, Avelino Luiz Rodrigues, médico, professor e pesquisador das interações mente-corpo e somatizações do Instituto de Psicologia da USP, comentou: “Eu senti também, nos professores, um sofrimento pela ausência desse contato com os alunos e, também, uma incerteza. A incerteza que eu vivi do quanto que eu estava conseguindo transmitir para os alunos aquele conhecimento que eu estava me propondo a transmitir. Eu me sentia em uma sala escura, falando em uma sala escura sem ter a noção de como aquele meu discurso estava impactando [os alunos]”.

No ano passado, Stella Nicolau, professora do curso de Terapia Ocupacional da Unifesp, viralizou cantando um samba sobre algumas dessas dificuldades.

Consequências psicológicas

As universidades trazem espaços para além das salas de aula. São refeitórios, vivências, entidades, bibliotecas e museus, que intensificam as experiências e interações em torno do universo acadêmico. Durante a pandemia, grande parte disso foi interrompido. Novos alunos chegam e vão sem experienciar a vida universitária como um todo. Esse sentimento de que algo foi subtraído dos alunos e dos professores traz consequências psíquicas ainda não mensuráveis.

Um estudo realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2017 pela professora Grace Schenatto Pereira com camundongos em isolamento social por uma semana concluiu que os animais apresentaram quadros de depressão, ansiedade e perda de memória social. A última diz respeito ao reconhecimento de seus semelhantes. Os roedores utilizam seus repertórios de cheiro para reconhecer uns aos outros e, ao ficarem isolados, perdem essa memória. 

Os camundongos sofreram mudanças neuroquímicas no cérebro com menor produção de serotonina e dopamina em áreas importantes para o processamento de emoções. Além disso, o volume do bulbo olfatório que processa odores também diminuiu.

Esses transtornos foram reduzidos quando em “ambientes enriquecidos”, ou seja, ambientes capazes de estimular os indivíduos. No caso dos camundongos, isso significa túneis e objetos e, para os seres humanos, atividades como tocar instrumentos, fazer exercícios físicos e leitura. Contudo, a pesquisadora não acredita que as mídias sociais estejam entre essas atividades. As redes são insuficientes para manter os estímulos cerebrais.

Apesar de a pesquisa ser relevante no atual momento da pandemia, Avelino Luiz Rodrigues ressalta que só será possível observar os efeitos do isolamento social advindos da falta de interação nas escolas, em uma dimensão coletiva, ‘no decorrer do tempo’. “É tudo muito novo e aconteceu de uma maneira muito intensa, muito rápida”, indica. Segundo o professor, por enquanto, o mundo conhece mais apenas os casos mais extremos e de maior sofrimento.

Acerca da sensação de perda experienciada por muitos jovens, Rodrigues explica que não há dúvidas de que haverá a sensação de que lhes foi subtraído algo. “Agora, se isso vai chegar ao ponto de provocar sofrimentos mais intensos ou que possam provocar sintomas, acho que depende muito da personalidade, das vulnerabilidades internas que cada um de nós tem. Quanto mais impactar nessas vulnerabilidades, maior vai ser o sofrimento psíquico”, afirmou.

Ainda que, no momento, não seja possível avaliar de forma mais ampla o sofrimento psíquico desse período, como afirmado pelo professor, há diversas pessoas que já estão enfrentando problemas derivados do novo formato de ensino remoto nas universidades. 

A estudante de Arquitetura e Urbanismo da UEL, Carolina Alves, conta que tem se sentido muito mais ansiosa e cansada: “Parece que pela internet a gente sai cinco vezes mais exausta da aula. É difícil ter concentração”. 

Clara Souza, que tem 21 anos e é estudante de Relações Internacionais na FGV, concorda: “Depois dessa primeira fase de empolgação com o ensino remoto, eu descobri que ele não favorece muito a minha concentração. Eu me sinto cansada porque ele rouba toda a sua energia”.

As duas contam que sentem saudades das aulas presenciais, mesmo que estejam conseguindo lidar com a maioria das dificuldades trazidas pelo ensino remoto. Carolina sente falta do apoio e companhia de seus amigos, principalmente no momento de fazer trabalhos sozinha em casa.

Saúde Física dos estudantes e professores

A pandemia também trouxe diversas implicações físicas. Estudando e trabalhando em casa, as pessoas passaram a ficar muito mais tempo sentadas e em frente às telas de computador. Somado ao tempo de entretenimento, que também passou a ser quase exclusivamente online, isso vem causando um excesso de exposição às telas. Esse excesso é extremamente prejudicial, podendo provocar cansaço visual, miopia, dor de cabeça, irritação e até falta de concentração.

Confinadas em casa, além de ficarem muito tempo sentadas, muitas pessoas não dedicam parte de seu tempo livre à prática de atividades físicas, o que pode ser ainda pior para quem já tem uma predisposição ao sedentarismo. Além disso, quem costumava praticar esportes que requerem um ambiente propício para a atividade, como é o caso de uma piscina na natação, também foi prejudicado. 

Em entrevista à AUN, Augusto César F. de Moraes, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, contou que houve aumento considerável do comportamento sedentário durante a pandemia. O professor explicou que este comportamento é estritamente relacionado “à maior chance de desenvolver uma série de doenças crônicas, como por exemplo diabetes, hipertensão arterial, e alguns cânceres”.

Para além dos resultados favoráveis dos exercícios para a saúde física, eles são importantes para a saúde mental, servindo para reduzir sintomas de ansiedade e depressão, por exemplo. Algumas opções se apresentam para a realização de atividades na pandemia, como os exercícios dentro do espaço domiciliar ou a prática em locais abertos, a exemplo de parques, seguindo todos os protocolos de segurança e o distanciamento social.

Outra implicação física, que é muito pouco comentada, é relacionada à saúde bucal. No podcast Momento Odontologia #81, do Jornal da USP, a professora Marinella Holzhausen Caldeira, da Faculdade de Odontologia (FO) da USP disse que estresse, medo e preocupação causados pelo longo período de quarentena podem acentuar problemas bucais, como a cárie dental, a doença periodontal e até mesmo a perda de dentes.

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