A escassez de livros e teses que trabalham a aprendizagem motora do judô revela a inflexibilidade da tradição nos modos de ensino. Essa percepção motivou o pesquisador da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP, Fernando Ikeda Tagusari, a explorar uma linha de inovação sobre como se ensina essa luta no Brasil.
Fernando, que também atua como coordenador do Departamento de Oficiais Técnicos e integrante do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô, trabalhou o golpe de perna o soto gari com 24 crianças, com média de sete anos de idade, do Colégio Aldeia dos Pandavas, na capital paulista. A escolha da técnica se deve ao fato de ser a primeira ensinada a iniciantes. O pesquisador explicou que a principal distinção entre o modelo tradicional e o que ele experimentou está em mostrar quando, e não só como, aplicar o soto gari. “O que acontece quando você aprende judô? Você segura a pessoa, que fica parada, e aplica o golpe repetidamente. Nesse caso, estamos focando na tarefa. No meu trabalho, adiciono a meta de aprendizagem, ou seja, o contexto em que esse golpe vai ser usado.”
Os alunos tiveram três opções de como fazer o o soto gari: apenas a repetição, do modo comum; e duas derrubando o adversário, mas com movimentações diferentes. O objetivo era perceber se havia diferença entre a criança que apenas aprendeu como aplicá-lo e a que aprendeu pensando que faria uma luta. Segundo Fernando, ainda não se pode determinar com precisão qual a maneira mais efetiva de treinar um iniciante, mas foi aberta uma margem para questionamentos: “Quem recebeu informação da meta de aprendizagem teve um melhor desempenho do que aquele que recebeu só a tarefa. Isso nos deu pequenos subsídios para se questionar a maneira como é ensinado judô”.
Ensinar o contexto
O processo realizado traz uma aprendizagem autocontrolada, que significa que o foco está no aprendiz e ele controla a maneira como treina, a interferência do professor é mínima. Para isso, é necessário apresentar o contexto e deixar que a criança desenvolva habilidades de como formular estratégias para aplicar o golpe.
A ideia contrapõe o tradicional modelo de realização de tarefa e tem como finalidade a adequação ao ambiente mais provável do judô – o combate. Quando há uma situação de luta, o oponente está em movimento. Essa talvez seja a maior dificuldade de um iniciante: conseguir reconhecer a possibilidade de movimentação para derrubar o parceiro. Existe assimetria entre uma condição estática e dinâmica, portanto saber em qual cenário utilizar uma determinada técnica se torna imprescindível e, como se revelou na pesquisa, otimiza a aprendizagem.
As crianças foram apresentadas ao contexto por meio da visualização direta, em que assistiram ao randori (luta em que não se conta pontos). Não foi uma explicação do que elas deveriam fazer, foi uma exibição. “Eles viram de fato, eu apenas disse ‘esse é o contexto que vocês vão utilizar’. A única instrução foi para garantir que a pessoa que fosse cair não oferecesse resistência”, descreve Fernando.
Teto de vidro da inflexibilidade
O judô chegou ao Brasil junto com os imigrantes japoneses e era tido como um modo de manter a conexão com a terra natal. “Se formos pensar, os imigrantes não vieram com a ideia de se estabelecerem aqui, eles pensavam em alguma hora voltar para o Japão”, explica. A ligação com cultura é uma das principais bagagens dessa arte marcial, o que justifica o apego ao costume. “A gente costuma brincar que parece que os japoneses brasileiros, os descendentes de imigrante, são mais japoneses que os japoneses do Japão, tamanho apego à tradição.”
O pesquisador também relatou que o tradicionalismo foi difícil de desconstruir em nível pessoal. Ele conta que foi um desafio questionar a metodologia que aprendeu a vida toda com seu professor. Desse modo, a tradição se tornou a barreira a ser transposta: “Não é que ele [o professor] está errado, mas será que não existe uma outra maneira? Afinal, tudo avança, o judô não parou no tempo, o próprio Jigoro Kano (fundador da arte) falava que o judô continuaria a progredir depois da morte dele”.
Há muito material com avanços para treinamento da modalidade, mas pouco se tem em termos de ensino. Apesar desse espaço a ser explorado, Fernando não sabe se é uma tendência para o futuro, porque a tradição pode atuar como um teto de vidro, ou seja, uma espécie de bloqueio invisível para a progressão de novas propostas que surgem com pesquisas na área da aprendizagem motora.
Questionar é a largada para trazer luz de inovação e mostrar outros caminhos para o ensino do judô, por isso, com base nos resultados positivos da dissertação, o pesquisador seguirá aplicando a meta de aprendizagem. “Não é o fato de eu estar disposto a desconstruir isso que as outras pessoas também vão estar. É um primeiro passo e pode ser que tenha adeptos? Talvez. Quem vai aceitar a relevância são meus pares. Para mim, foi um exercício de amadurecimento.”
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