Falta de hormônio no início da vida desencadeia disposição de obesidade no adulto

Organismos com falta do receptor da leptina apresentam tendência de aumento de peso na vida adulta | Foto: Domínio Público / Wikimedia

O organismo adulto apresenta problemas na massa corporal e encefálica e com a manutenção da reprodutividade se a ausência de sinalização do hormônio leptina ocorrer no período embrionário e nos primeiros anos de vida. Os resultados de experimentos feitos com camundongos pela pesquisadora Angela Ramos, no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, apontam para aumento de peso e dificuldade para perdê-lo, redução significativa do tamanho do cérebro e infertilidade, tanto em fêmeas quanto machos. 

A leptina é conhecida como o hormônio da saciedade por conta de uma de suas funções mais conhecida. Ela é produzida pelo tecido adiposo, estrutura presente em determinadas células que armazenam gordura. Quando a “reserva” está vazia ou cheia, o hormônio é acionado e recebido por outra parte do corpo através de seu receptor, o LepRmais especificamente no hipotálamo, localizado no cérebro. Informado, ele saberá da necessidade de comer mais alimentos ou não.

Os caminhos da descoberta

Algo já conhecido pela ciência é que pessoas com quadros de obesidade e sobrepeso apresentam justamente uma resistência ao hormônio leptina. Segundo os resultados da Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), feita pelo Ministério da Saúde e divulgada em julho de 2019, o País teve um aumento de 67, 8% no número de pessoas com obesidade nos últimos treze anos. Mais da metade da população nacional, 55,7%, está acima do peso. A Organização Mundial da Saúde (OMS) projeta o número de cerca de 2,3 bilhões de adultos com sobrepeso e mais de 700 milhões obesos no ano de 2025.

Só que a relação do hormônio e do receptor é mais complexa, indo além desse já conhecido trabalho da informação da fome. “Já sabíamos da importância dela no balanço energético em adultos. Queríamos entender o que a leptina faz no começo da vida”, comenta a pesquisadora Angela, que defendeu a tese de doutorado sobre as funções da leptina e que deu fruto ao estudo e ganhou o Prêmio Tese Destaque USP em 2019.

A pesquisa desenvolveu duas linhas para analisar os resultados. A primeira era criar animais que não teriam o tal receptor no período neonatal e na infância, mas que esse quadro seria revertido na vida adulta. O modelo cresceu sem a sinalização, só que teve ela reativada através de uma droga na fase madura da sua trajetória. “Essa foi uma ferramenta preciosa e era isso que nos interessava: ter uma história, desde o início, sem o receptor e você desenvolvê-lo depois”.

Esse “apagamento” é quando o animal tem em seu genoma uma sequência que faz o gene do LepR não ser expresso. “Essa sequência pode ser removida com a injeção de uma droga específica e é isso que nos permite restabelecer a expressão fisiológica do receptor no momento da vida que a gente escolhe”, conta Angela.

Os modelos estudados tiveram o peso acima do normal quando chegou a fase adulta. Contudo, quando a situação foi revertida com a presença do receptor, eles tiveram uma perda de peso e uma leve recuperação do consumo alimentar. “Mas ele não volta ao peso ‘normal’, digamos assim. Ainda apresenta uma certa elevação. E também implicou na forma como esse animal gasta sua energia, que foi de uma maneira menor se comparado com um animal que não teve a deleção de genes do receptor”, explica a pesquisadora.

Além da sensação de saciedade

Em dois outros pontos, a leptina mostrou sua complexidade. Ela se relaciona e interfere no desenvolvimento do sistema reprodutivo de alguma maneira. Sem o LepR, os camundongos apresentavam infertilidade, ou seja, não podiam procriar. Uma vez reativado, os animais tornavam-se férteis, mas de forma parcial. 

Segundo Angela, os indivíduos machos – mesmo sem uma quantidade pretendida de hormônio – poderiam ter uma reposição com suplementação. Já nas fêmeas, foi observada uma situação um pouco mais complexa por conta da fisiologia do ciclo gestacional. “Mas não testamos a gravidez. O que vimos foi a expressão dos genes do sistema reprodutor no cérebro. Foi por meios diretos e indiretos que notamos essa relação”.

O outro apontamento que chama a atenção é: sem esse “interlocutor” do hormônio, os camundongos tinham o peso da massa encefálica menor. Quando reativado, ocorria um aumento parcial. Essa descoberta ainda não pode afirmar quais as implicações que essa redução e reversão têm nos indivíduos, como comportamento ou capacidade cognitiva. 

Para aprofundar um pouco mais o conhecimento no efeito sobre o cérebro, existe uma recente pesquisa paralela sendo feita entre o professor José Donato Júnior – orientador de Angela –  do Departamento de Fisiologia e Biofísica do ICB da USP e a neurocientista Fernanda De Felice, do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ambos trabalharam junto com Angela no estudo, que foi publicado pela revista eLife e integra o gigantesco banco de dados do National Center for Biotechnology Information.

 

Interação entre a leptina liberada pelo tecido adiposo sendo enviada ao cérebro | Foto: Jéssica Takahashi / Three Fit

Ajudando a entender o processo em humanos

A segunda frente de pesquisa de Angela analisou os resultados em camundongos que nunca tiveram obesidade. A comunicação do hormônio e o LepR foi interrompida na fase mais jovem. E antes que o modelo animal apresentasse obesidade, o quadro foi revertido com a reativação. “Repetimos o experimento porque a leptina regula o peso a partir de uma determinada idade. Vimos que ela, no sistema nervoso central, está preparando o organismo para efeitos na vida”.

A pesquisadora explica as duas frentes. “O primeiro conjunto de experimentos foi feito em camundongos adultos. A ideia de escolhermos essa idade foi esperar que a maioria dos processos de plasticidade no sistema nervoso central estivesse concluída e assim ver quais eram as respostas que permaneceram alteradas após a reativação do receptor”. Foi feito outro conjunto de experimentos nos animais mais jovens para reativar o receptor antes deles se tornarem obesos e restringir o período de vida no qual eles ficaram sem a sinalização de leptina. “Assim podemos identificar processos que dependem da ação da leptina no começo da vida”, completa.

Atualmente trabalhando na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, Angela conclui que o período crítico da leptina é no início da vida e indica como isso se relaciona com os problemas humanos. “Trabalhar assim foi um desafio muito grande e exigia uma técnica avançada. Analisar a história temporal de um organismo não é tão simples e precisávamos de calma. Mas traz perspectivas. Para entender o problema hoje, temos que olhar para trás. Temos que pensar como é alimentação das crianças, o ambiente delas agora e na vida adulta”.

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