A necessidade de afirmação e aceitação social não é uma preocupação exclusiva da sociedade atual. As auto representações feitas nas redes sociais, ao permitirem que a pessoa escolha como quer que o corpo social o enxergue, apresentam semelhanças com a negociação da própria imagem feita pelos pintores ao longo de toda a história – ainda que telas de pintura e feeds do Instagram, entre suas mil particularidades, pareçam uma comparação duvidosa. Esse é um dos aspectos apontados por Gustavo Regina ao falar sobre sua dissertação, desenvolvida no Instituto de Estudos Brasileiros.
Ao escolher observar especificamente como as masculinidades foram representadas e expressadas nos quadros, Gustavo explica: “usamos ‘masculinidades’, no plural, porque estávamos refletindo se existe apenas uma forma de homem expressar sua virilidade, que talvez nem seja a masculinidade como conhecemos”. Inicialmente, a ideia era estudar os retratos, mas logo surgiu a ideia de investigar como o artista pensa a si mesmo e sua masculinidade e como negocia isso com o mundo. A partir desse recorte, foram estudados pintores brasileiros simbólicos, como Pedro Américo e Almeida Júnior. “Através da análise, fui reparando como viviam, como era o contexto, o que era exigido deles, qual era o pensamento da sociedade, e como eles foram negociando isso nas representações”, conta o pesquisador.
Ainda sobre o processo de pesquisa, Gustavo conta que foi feita uma linha do tempo, investigando como os autorretratos foram feitos desde os primórdios: “pegamos alguns exemplos gregos, romanos, caminhamos para o medieval, barroco, renascimento, todas essas épocas, observando a evolução e catalogando”, explica. A catalogação foi feita com base em aspectos como roupas, escala cromática, se os homens estavam em grupo ou sozinhos, entre outras características observadas e organizadas numa tabela sobre a temática.
Com as características estruturadas, Gustavo comenta a surpresa ao perceber que, por muitos séculos, não existem grandes mudanças – apesar de existirem, é claro, algumas exceções. “Era sempre algo mais contido, justamente porque o autorretrato tem esse papel de negociação, é como o artista está se apresentando para o mundo e ele quer se apresentar da melhor forma, até para se inserir no mercado”. É daí que surge a comparação com as redes sociais, onde é possível que cada indivíduo selecione o que quer que seja público e apareça. “É uma forma de criar uma imagem de quem você é, agenciar sua própria imagem”, explica o pesquisador.
É a partir dos anos 1960 que as coisas começam a mudar. Num contexto de transformações de diversos nichos e em vários lugares do mundo, as representações da masculinidade em tela não são uma exceção dos ares de mudança. Enquanto os quadros mais antigos mostravam a imensa maioria dos homens vestidos, o padrão muda depois da metade do século XX: “A partir dos anos 1960, e até hoje, o nu é a regra”, comenta Gustavo.
Sobre essas mudanças, chama atenção o fato de que essa ruptura aconteceu tão tardiamente: “Isso pode ser inclusive algo como quando aconteceu o feminismo da segunda onda, quando as mulheres começaram a questionar o próprio corpo. Os homens fizeram isso de uma forma mais tardia porque talvez não tivesse tanta necessidade social”, observa. O aspecto das vestimentas não é a única ruptura com o padrão observado anteriormente. Desde então, a representação é feita de forma mais grotesca, que flerta com a morte: “aparecem elementos como sangue, ossos, corpos, órgãos, uma simbologia muito mais agressiva que não existia”.
Resgatando a comparação com as redes sociais, um aspecto interessante percebido na pesquisa é a constante negociação entre diversas nuances para agenciar a própria imagem. “O artista fica como se fosse num tripé; numa negociação de fatores culturais, dos antecedentes, do imaginário existente; no outro pé, está o que a sociedade exige dele; no terceiro pé, está o que é ele é, de fato”, explica Gustavo. “Sempre transitando por esses pontos, existe ali um grau de sinceridade de como ele se enxerga e se coloca, mas também existe uma criação de como ele quer ser visto, compreendido e aceito”.
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